quinta-feira, 14 de maio de 2009

Tópicos Dominantes a partir de um exercício

[ Em 23 nov 2005 me foi proposto um exercício que consistia em identificar na historicidade de Guimarães Rosa o Tópico 10 Raciocínio e dentro destes se era cíclico e/ou aleatório, era isto que era para ser feito, contudo pensei e escrevi outras coisas bem diferentes; quero deixar claro que o que escrevi/derivei é de minha inteira responsabilidade, pois não seria ético dar a entender que o texto que segue foi 'aprovado' pelos profissionais da filosofia clínica, assim, o meu texto, a maioria de todos os textos que postarei neste blog 'fogem' à teoria da filosofia clínica no sentido de que eu os levo para outros lados, derivo e escrevo ideias que não constam nos ensinamentos da filosofia clínica, portanto, assumo a distância teórica que existe entre o que penso e escrevo e o que de fato é ensinado pelos filósofos clínicos para manter a integridade destes. sandra adriana]
HISTORICIDADE DE GUIMARÃES ROSA

TÓPICO 10 RACIOCÍNIO

"_CÍCLICO [fazem parte de um raciocínio cíclico: os devaneios; as reflexões são iniciadas a partir de abstrações. B]
_ALEATÓRIO [fazem parte de um raciocínio aleatório os pré-juízos, isto é, o raciocínio inicia a partir de pré-juízos, verdades subjetivas. B]"
Questões formuladas a partir do encontro_
1. Existem outros tipos de raciocínios? Algo como: raciocínio-em-recíproca-de-inversão; raciocínio-em-estado-sensorial; raciocínio-em-estado-abstrato; raciocínio-em-estado-emoção; raciocínio-em-estado-pré-juízo; raciocínio-TAI; raciocínio-universal; raciocínio-particular, raciocínio TSingular; raciocínio T Unívoco; raciocínio T Equívoco; raciocínio DC; raciocínio DI; raciocínio B_E; raciocínio-busca; raciocínio paixão dominante; raciocínio C&F; raciocínio espacialidade-inversiva; raciocínio-recíproca-inversiva; raciocínio-deslocativo-curto; raciocínio-deslocativo-longo; raciocínio-semiótico; raciocínio-significado; raciocínio-armadilha-conceitualizada; raciocínio-axiológico; raciocínio-topicidade-singular-existencial; raciocínio-epistemológico; raciocínio-p.existencial; raciocínio-ação; raciocínio-hipótese; raciocínio-experimentação; raciocínio-princípios-de-verdade; raciocínio-analítico-estrutural; raciocínio-intersectivo de EP; raciocínio-matemático-simbólico; raciocínio-autogênico.

Com isto quero dizer que:

Existe um tópico dominante na estrutura do pensamento de cada um de nós.
Se há este tópico dominante o mesmo 'conduz' uma pessoa por muito mais tempo do que todos os outros tópicos.
Em uma analogia com Aristóteles poder-se-ia pressupor que este tópico, sendo dominante, conteria os outros tópicos subjacentes a ele em um grau menor de intensidade, “subordinados” ao tópico predominante, os não-dominantes seriam partes do tópico maior-dominante_ é um raciocínio que intuo estar saindo de meus estudos a partir da filosofia antiga, mas assim, transpostos para a filosofia clínica não possuem atribuição platônica nem platonistas, penso eu.

Assim, “alguns” tópicos estariam contidos no tópico predominante e possuiríamos uma interseção de tópicos_ provavelmente isso tem a ver com malha intelectiva, ainda que eu tenha extrapolado nas derivações_

Como um pré-juízo que inicia um raciocínio seria aleatório? Como saber se é um pré-juízo que gerou um raciocínio? Precisaríamos antes saber de que natureza é este pré-juízo, se ele é um p-j escolhido, se é um p-j que habita a EP mas não há ciência de sua existência muito menos questionamentos etc; é difícil saber onde um pré-juízo se encontra, qual seria o lugar de um pré-juízo? E dessa forma teríamos relações quase ao infinito: pré-juízos-representativos; pré-juízos-sensoriais; pré-juízos-inversivos; pré-juízos-de-reciprocidade-inversiva; pré-juízos-significados; pré-juízos-analíticos-estruturais etc etc ... não vou nem seguir com essas expressões sincategorimáticas, pois isso vai me levar a um 'raciocínio-desesperante.'

Isso faz sentido? Captar o tópico de maior importância e colocar os outros tópicos como subtópicos adjetivando-os como “subcategorias” à estrutura do pensamento? Seria possível trabalhar assim? Pense, os subtópicos, se fizermos uma leitura aristotélica, seriam os “acidentes” do tópico-substância, seriam acidentes no sentido de que podem acontecer ou não devido a estarem subjacentes ao tópico dominante. Não sei, eu gostei dessa minha analogia, mas acho que desvirtuei tudo não? Não consigo me manter dentro daquilo que as coisas são, de como as coisas são dadas, eu tenho essa tendência de ir-ir-ir-em direção ao raciocínio-cíclico com uma certa dose de aleatoriedade-espontânea ou intuitiva ou de momento, eu apenas vou em busca de explicações e se não as encontro eu acabo caindo no raciocínio-cíclico, de devaneios_ segundo os exemplos que você me forneceu no exemplo. Mas, particularmente não vejo muita distância entre explicar e derivar ou explicar e abstrair, pois para explicar é necessário abstrair e uma abstração acaba produzindo uma explicação, o texto autobiográfico de Guimarães Rosa é uma explicação de sua vida de ser humano e escritor ou de escritor e ser humano para isso ele precisou abstrair e entrar em alguns devaneios de seu passado; o texto é uma abstração/devaneio de sua vida de ser humano e escritor ou de escritor e ser humano para isso ele precisou explicitar partes do seu passado através de vários pré-juízos. O texto alterna os dois tipos de raciocínios, ora GR é cíclico, pois abstrai várias situações vividas abordando devaneios do vivido-no-sertão, ora ele é aleatório, pois explica, por exemplo, a vivência política por meio de suas próprias verdades subjetivas. É difícil dizer com propriedade onde inicia um tipo de raciocínio e onde termina e começa o outro, pois me parece que ambos se misturam ao longo do texto.

Novamente não entendi direito os termos utilizados: cíclico e aleatório.
Vou me render ao estado conformativo da vida simples. Ainda bem que resolvi fazer isso morando aqui.

Delirei muito?
Em todos os casos levarei na próxima quinta-feira o texto marcado com: RA & RC.
*

*
alguns pensamentos soltos:

2) Ao se trabalhar com tópicos que se constituem como partes de uma unidade não se está fragmentando a existência de uma pessoa? Como estabelecer uma visão de totalidade sobre uma pessoa sem vê-la como tópicos fragmentados e quantificados? Isto é, como explicitar via linguagem a estrutura de pensamento abordando os tópicos não de forma separada, mas de uma forma que constitua a existência de uma pessoa, seu modo-de-ser/existência em unidade ainda que constituída por partes. Deve haver uma relação entre os tópicos que seja como uma “síntese” de toda a EP e que não seja definível por nenhum dos tópicos mas por uma abrangência maior que não caia na “tipologia” da EP. Uma espécie de autogenia-singular, talvez, um ponto de vista maior, não sei como explicar isso... em imagens: como uma cor etérea que estivesse dentro, ao redor, por sobre, no tempo e no espaço, nos submodos informais, como uma cor em forma de neblina que envolvesse os tópicos e os submodos imperceptivelmente, mas que está ali fornecendo a “unidade” a tudo aquilo que constitui a existência de um ser humano.

Estranho, critiquei tantas vezes a busca de uma unidade filosófica em forma de sistema filosófico na Academia e nos pensadores sistemáticos e estou eu, agora, procurando a mesma coisa dentro da Filosofia Clínica. Mas, não desejo buscar um ponto sistemático para a EP, seria sim algo como um “ponto” da existência singular de uma pessoa, sendo redundante e nada tendo a pensar neste instante sobre tal especulação fico com a verdade subjetiva de todos os humanos: o “ponto” é o próprio fato de sermos humanos, esse é o ponto e isso é tudo? Estou cansada de buscar respostas e não encontrá-las, fiz centenas de perguntas e poucas foram respondidas. Não consigo ser conformativa com isso, quero respostas para ir em frente, mas não as encontro. Encontro cada vez mais perguntas & perguntas. Por exemplo, não concordo com a divisão do T. 10 em Cíclico e Aleatório; não consigo ver no R. Aleatório uma aleatoriedade absoluta para que o termo utilizado seja este; não consigo ver somente devaneios na R. Cíclica, pois nem toda abstração é um devaneio, embora todo devaneio possa ser abstrativo_ já que até mesmo as imagens dentro do pensamento são abstrativas; nem todo pré-juízo pode ser aleatório, pois se considerarmos que todo pensamento e todo dizer constitui-se de verdades subjetivas_ já que a FC parte do homem como medida de todas as coisas_ então, nem todo pré-juízo teria que necessariamente ser aleatório, pode ser de outra forma, verdades subjetivas escolhidas ao longo da vida, a FC pode ser a minha verdade subjetiva hoje e não o ser amanhã e isso é uma escolha minha que não é aleatória, não é "dependente de fatores incertos, sujeitos ao acaso" já que meu pensamento não é puro acaso logo minhas escolhas também não o são, não é "fortuito, acidental" [num sentido não-aristotélico] então como afirmar que uma verdade subjetiva por ser uma "explicação" [definição dado por você] seja aleatória? Para ser aleatória teria que ser algo tipo senso comum, ou aquilo que Nietzsche tanto criticou, aceitar tudo que acabamos sendo pela vida que vamos assimilando sem nos perguntarmos se tais valores são aqueles desejados.
O que significa dizer que um pré-juízo é aleatório? O que significa dizer que uma razão cíclica é uma abstração e um devaneio sem que sejam diferentes entre si? Sabe, acho que não consigo encaixar os termos com suas definições, parece haver sempre um algo “equivocado”, algo que não faz sentido para mim, que possui contradição, que possui coisas a serem explicitadas e tal. Talvez a fc não queira cair na objetivação da linguagem para não cair no mesmo problema heideggeriano, mas não temos como fugir à armadilha da linguagem e de alguns referenciais_ tipologias_ e de alguns pressupostos como ponto de partida para se encontrar alguns caminhos, do contrário, de que valeria atender um partilhante se não se pode sequer pensar que este caminho existe?
*
[... longa digressão bem boba...] para terminar com:
Como é uma morte que inicia pelas extremidades?

Para dizer que a digressão foi um exemplo de rac. cíclico em forma de devaneio-abstrativo, também em forma de analogias, metáforas, vice-conceitos?, não sei, quando as coisas fluem é dificil dizer o que são, é dificil explicar algo que vem pela espontaneidade e no momento em que eu tivesse certeza de ter conseguido explicar um ato espontâneo [mesmo do pensar] então eu teria uma verdade subjetiva a mais na minha vida, outro pré-juízo, e não seria aleatório se eu o tivesse encontrado via reflexão [cíclico] hummm, agora percebo algo... olhe a armadilha em que estou [você também e todos os filósofos deste mundo] não conseguimos trabalhar sem definições, sem dizer o que as coisas são, sem responder à pergunta O que é "isto"? [e a culpa não é dos gregos, é dos humanos mesmo] mas assim que encontramos uma definição os problemas aumentam, é um paradoxo, digo, uma armadilha sem fim, uma possível definição encontrada implica em outras inúmeras questões... droga, está me fugindo o raciocínio, quero dizer que o erro talvez esteja na forma como nos acostumamos a definir algo, tipo, "aqui é raciocínio cíclico", agora, após esta vírgula é raciocínio aleatório" e por aí vai, não teríamos que ver a "ponte" que liga uma coisa à outra?, não teríamos que captar a passagem de uma coisa a outra? não há um término e um re-início de uma forma-de-ser à outra, há uma continuidade-existencial, não vejo isso no modo como olhamos para a historicidade de G Rosa, por exemplo, trabalhar assim, aqui é X ali é Y estabelece o pressuposto de que há sempre um início e um fim sem continuidade com outros elementos que envolvem uma pessoa em sua singular-totalidade, ou seja, sua existência. Não seria preciso ver os fios invisíveis que fazem essa transição de uma coisa a outra? Pontos de referência que não sejam "fixos" e afirmativos, que possam ser como a vida, um fluir, uma cor em forma de neblina, um estar-aí com continuidade, sem fragmentações.

desculpe, escrevi muito e já nem sei o que escrevi, vou enviar e ler depois, para ser fiel à espontaneidade, do contrário vou cortar partes. melhor filtrar aí o que serve de especulação filos ou não.
beijo
sANdrA
[pois então... reflexões e escritos de 2005 postados em 2009_ deve servir para alguem pensar algo bom em cima disso, não é mesmo? eu pratte in em terra de azevim...]

Ilações: Filosofia Clínica: Tentando responder para mim sobre o deve haver algo que não muda na estrutura de pensamento de uma pessoa

Ilações: Filosofia Clínica: Tentando responder para mim sobre o deve haver algo que não muda na estrutura de pensamento de uma pessoa

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Tentando responder para mim sobre o deve haver algo que não muda na estrutura de pensamento de uma pessoa

(tentanto encontrar o email onde pergunto pelo algo que não muda, tentei, em 2005, encontrar uma resposta, ainda que seja simples demais, ainda que não tenha me levado à continuidade das pesquisas na época, pensei ser importante repensar o que escrevi na época_ e vou tentando ver onde está o email que me levou a derivar para a existência de uma 'base' nos tópicos da estrutura de pensamento)
Pressuposto possível e inicial: tópico emoções determinante aliado ao tópico semiose «cantar» e outros dados semióticos referentes à música formariam o domínio de EP sendo que a busca por este mundo da arte manifestou-se desde muito cedo.
Conflito: o amor como ponto central do modo de existir, ao perder o pai, o amor por alguém vivenciado em forma de «não’s», a «perda» de duas pessoas amadas. Como se o tópico 4 ficasse sem sentido, como se aquilo que constitui ML em sua unidade de ser humano e que teria lhe dado grandes alegrias agisse como um pharmakon, como a existência do outro lado das emoções. Embora ela diga que só agora compreendeu que tudo é «amor» pode-se ver pela historicidade que este tópico esteve presente em sua vida, principalmente através de sua música. O amor por tudo denegado em função de uma espécie de “traição” da vida, o colocar a culpa na própria representação de mundo, então responsável pela dor e sofrimento. Nada mais natural, por uma lógica intuitiva, de desejar acabar com uma das partes que a constituíam tão determinanentemente, o tópico emoção e que a ele esteve vinculado até os 40 anos de idade. Parar de cantar como solução para denegar o tópico de onde o mundo se origina enquanto vida. Mas como não viver algo que se ama tanto? A mudança na voz, o ficar sem voz pode ter sido o submodo infomal via «tradução das emoções» que ML encontrou para sair de sua representatividade de como o mundo lhe parecia até então_ até a perda do pai e do amor não correspondido. O conflito não é difícil de ser visto, mas como mostrar isso a um ser humano? Seria possível, no caso de ML, por ser uma pessoa inteligente e com sensibilidade, explicar o que acontece ou se deve sempre usar submodos sem explicar o porquê do caminho utilizado?
Que submodos utilizar com M.?, para fazê-la compreender que «o acabar» com 2 tópicos dominantes que formam sua estrutura é «submodo informal» que ela estaria usando para sentir-se como vinha se sentindo?_ «um zero à esquerda». Não sei, acho que eu tentaria algo no sentido de despertar-lhe momentos de amor à música de uma forma que não estivesse este amor vinculado ao mesmo tempo e com a mesma intensidade aos seres humanos, pois o conflito parece vir daí, dores a partir do amor a algumas pessoas logo dores a partir do amor à música. Talvez música nos instantes da terapia, enraizamentos que trouxessem imagens queridas de algo que tanto ama, talvez até um acompanhamento a um recital, um sarau de músicos, concertos, coisas do gênero fosse um submodo que a levasse de volta ao que ama. Viver junto com a partilhante o valor que colocou na vida e o qual denega por julgar de repente que este mesmo valor foi o responsável pelos maiores sofrimentos e perdas das pessoas que amou «o amor como valoração da vida, e das coisas onde se colocou este valor, formaria o T 18, axiologia». Inferência rápida: o amor à música e o amor às pessoas, haveria uma união inseparável entre o amor ao dado de semiose que domina sua EP e o modo como estabelece interseção com as pessoas? Parece que sim: a música como justificação existencial, o amor à música, o amor às pessoas, o pré-juízo de que o amor vindo do outro salvaria sua vida, armadilha conceitual a partir de uma possível posição de ficar refém do amor do outro, numa associação tópica, talvez ela se sinta refém do amor à música, será que o seu dom foi aceito nos momentos de dores e sofrimentos?, ou foi só quando trouxe alegrias que teve receptividade verdadeiraem direção aos outros tópicos que a constituem?

Outras hipóteses:
Tópicos predomintantes: T4 & T 15 associados ao T 18 enquanto valoração de vida «a própria respiração da cantora, como se observa pelo relato»
Tópicos vinculados aos dominantes, isto é, de T4 & T5 os outros tópicos se derivariam, como por exemplo:
« T 4 & T 15 » formando a base de T 1_ logo, o mundo parece ter que se constituir sempre de «amor» e «música».
« T 4 & T 15 » formando a base de T 2_ logo, o que a partilhante acharia de si mesmo poderia ser traduzido através de sua arte o que comporta sensibilidade, talvez o amor que sentia pela vida sem que tivesse percepção sobre isso.
« T 4 & T 15 » formando a base de sensorial e abstrato_ logo, a efetivação do dado de semiose «música» ao realiza-se por meio da vivência da música enquanto que o abstrato seria vivido em função do próprio abstrato singular de ser-artista, também através de dados de semiose que envolvem «o tópico dominante» como poesia, linguagem, literatura, a sensação de uma paisagem, de um toque, etc, poderiam ser verificados ao longo da terapia.
« T 4 & T 15 » formando a base de um pré-juízo novo que levaria ao próprio conflito existencial dos tópicos dominantes_ é possível inferir realmente a denegação/destruição do tópico vital?_ «o amor trazendo sofrimentos deve ser destruído» os tópicos vinculados entrariam junto e a ep simplesmente se autodestruiria levando a um estado de angústia no limite da vontade de vida. Este novo tópico de pré-juízo alimentaria o estado atual do conflito, serviria ao propósito mesmo de dar continuidade à desestruturação da ep. A possibilidade do tópico específico e dominante agindo com o seu outro lado «pharmakon, veneno», um raciocínio que parece dialético, mas não, ainda não consegui extrair disso o que «sinto» pois não seria somente um conflito entre os tópicos, mas algo que vai mais fundo.
« T 4 & 15 » vinculados com muita força ao significado de representação de vida formariam uma paixão dominante impulsionada pela sua busca contínua.
« T 4 & T 15 » enquanto traziam alegria, constituíam-se em discurso completo, no momento em que lhes foi atribuído um significado de dor e sofrimento, angústia, o discurso completo foi interrompido, como se continuar a vivenciá-los fosse dar continuidade à dor e à angústia. Associação dos tópicos dominantes com aquilo que eles proporcionam a quem os vivencia poderiam desviá-los do discurso completo e como vivenciá-los em discurso incompleto tornariam a ep caótica em seu viver no cotidiano, com oscilações, este desvio junto ao novo pré-juízo daria uma força maior ainda ao processo iniciado da desestruturação da ep. Assim, um novo pré-juízo e um novo significado de T 4 & T 15 vivenciados fora do discurso completo proporcionando um processo existencial novo, porém caótico e em conflito de topicidades, poderiam conduzir ainda mais um tópico: um novo padrão de armadilha conceitual pode iniciar facilmente e se imerso nele por muito tempo a ep correria o risco de não conseguir mais sair deste contexto e retornar ao seu modo de ser vital.
*Rapidamente foi isso que senti no relato, daria para especificar de forma analítica os pré-juízos, valores, papéis existenciais, categoria lugar, relação, etc, mas curti mais elaborar as hipóteses a partir do que meus «olhos» viram em primeira mão. (rever o texto)
*Informação dirigida[1] para filtrar representações, percepções, etc. (versus capacidade de se colocar no lugar do outro) (rever)
*Não sei o que fazer com essas hipóteses precipitadas desse segundo exercício clínico, só sei que é legal de elaborar hipóteses existenciais. Daria para verificá-las em um partilhante sem causar-lhe maiores danos? (rever)

[1] Vejo nos submodos uma informação dirigida o tempo todo, já que não fica claro a razão da «mão estendida» nos gestos sutis dos filósofos clínicos em direção ao partilhante.

Exercício sobre a historicidade de Guimarães Rosa

Historicidade de Guimarães Rosa (falta o itálico nas falas do Rosa)
(06 de dezembro de 2005)
Sou "o homem do sertão", um sertanejo, e quem depreender isto do que eu escrevo terá compreendido meus livros.
§ 1_ Tópico 2 «o que acha de si mesmo» singularizado na obra e universalizado em direção à literatura mediante a representação de mundo, de ser humano e de valores_ como se observa no decorrer do «relato» e a partir de sou “o homem do sertão”.
§ 2_ Pontos iniciais observados: o pressuposto de um tópico que implica em uma condição de possibilidade para a compreensão da obra por parte do leitor a partir da própria representação-existencial: sou o homem do sertão. O uso proposital do artigo definido “o” em vez do uso comum do indefinido “um” homem do sertão, permite novamente através do termo singular, neste caso, representado somente pelo artigo “o” referir-se a todo e qualquer homem dentro da concepção roseana e, uma vez mais, universaliza-se em todo homem, qualquer homem, homem singular.
§ 3_ Quanto ao tópico 1, diretamente vinculado ao tópico 2, o mundo não parece a Guimarães Rosa unicamente como sendo algo fenomenológico, «fenômeno, aquilo que aparece, o que é visto» em relação ao movimento interno de si e tendo como foco o exterior, a vida em seu devir natural, mas também como aquilo que é visto a partir do «olhar» de si, de dentro para aí desenvolver-se em várias e múltiplas dimensões. O «mundo» aparece a Rosa com o próprio interior do ser humano, como aquilo que é passível de aparecer a partir do «olhar» da própria representação interna seja em parte ou constituída por várias partes que formam então o homem do sertão e sem o qual não se poderia compreender nem a Guimarães Rosa nem a sua obra, considerando que ele afirma serem inseparáveis. Aqui aparece com obviedade o tópico 3 em ambas topicidades: em termos do sensorial ser o homem do sertão é claramente um viver sensorial dado pela infância de Rosa; em termos do abstrato, o sensorial ao ser transposto para a literatura vem a converte-se em abstrato, pois o ato de criação literária no instante de seu surgimento envolve-se numa ação abstrata do pensamento do escritor, pensar é um ato abstrativo por si só, imaginar é um ato abstrativo, lembrar é um ato abstrativo, descrevê-los é igualmente um ato abstrativo. Assim a transposição de sou o homem do sertão e as categorias de lugar, tempo, relação, formam o mundo circunstancial onde do sensorial-vivido, portanto, já passado, Rosa passa para o presente abstraído em forma de narrativa literária. Sua obra, nesse sentido, poderia ser vista como uma autogenia mais que singular e complexa por envolver o ser humano num nível ético em raciocínios que oscilam, entre cíclicos e aleatórios.
[1] Isso fornece ao leitor, num ponto de vista outro enquanto lê a narrativa de Rosa, um presente abstrato, porém um presente ilusoriamente tornado fenômeno via imagens e movimento do pensamento, logo, de forma não real, o texto lido vem a ser uma ficção-sensorial para o leitor que imerso na narrativa deixa-se conduzir por um abstrato dado no momento presente que falseia o sensorial que não lhe pertence, mas que contudo é produzido também nele pelo movimento da linguagem literária. Um sensorial presente, sentido como sendo o «agora» mas somente porque o movimento do pensamento e da linguagem absorvida é que possibilitam um sensorial em devir com o abstrato a dar continuidade a tal movimento. Em outras palavras, Rosa parte do sensorial para o abstrato e produz sua literatura, enquanto o leitor partindo do abstrato_ da própria leitura da obra_ produz o sensorial em uma dimensão singular sua, até onde vão suas imagens construídas a partir da leitura, até onde vai sua linguagem e capacidade de absorção de um mundo outro que não o seu, mas, contudo, «como se fosse» seu por ser «sentido-vivido» pela leitura. Considera-se, o que lemos não foi por nós vivido, portanto não-passível de trazer recordações legítimas, e ainda que Grande Sertão: Veredas, por exemplo, fosse lido por um homem do sertão as recordações que a obra poderiam lhe despertar não seriam suficientes para compor imagens recordadas de um sensorial que não é exatamente o seu, talvez aproximativo do vivido, mas apenas partes aproximadas por um dizer outro, o dizer do autor e só a este pertencem as imagens originais do ato da escrita. Toda essa explicação para dizer que o tópico sensorial e abstrato surge invertidamente se o ponto de vista for ou do autor ou do leitor. Este raciocínio se aplicado entre partilhante e filósofo clínico pode proporcionar recíprocas de inversão interessantes à clínica, pois o despertar sensorial de um pode ser o despertar abstrato de outro e o despertar abstrato de um pode ser o despertar sensorial de outro, a consciência das infinitas formas de recíproca de inversão entre dois seres humanos imersos na existencialidade específica de um deles não pode ser denegada em função apenas do partilhante, ou seja, apenas de um ponto de vista possível quando o que está em jogo é um diálogo compartilhado.
§ 3_Tópico 26_ Um todo que abrangendo partes forma o papel existencial de Guimarães Rosa_ poderíamos dizer que existe nessa primeira fala de Rosa um discurso completo quanto a sua existência de ser humano e de escritor, há uma conciliação entre o viver, o pensar, o ser-literato, indissociável da humanidade de Guimarães Rosa em uma busca constante junto à paixão dominante e ao dado semiótico literário e lingüístico, somado a isso, a axiologia e o significado assumem para o autor um «todo» no papel existencial de ser humano-escritor e que, poder-se-ia dizer, formam princípios de verdade aos quais ele não se desvinculou no decorrer da vida literária.
§ 4 _ Tópico _ Quanto ao papel existencial de Guimarães Rosa, saindo do papel existencial atuante em termos de realidade, supomos papéis existenciais da mente, do pensamento, de sensações produzidas pela criação literária do autor, enfim, papéis existenciais abstrativos ligados à paixão dominante de literatura e da linguagem num universo de representações abstratas-literárias, ainda que em parte o real vivido tenha sido um dos pontos de partida, como Rosa mesmo disse o real não está nem na saída e nem na chegada ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. A travessia em Grande Sertão: Veredas é a vida em seu fluir contínuo, independente de quem parte ou fica, em uma analogia, a estrutura de pensamento seria como a travessia, o real não estaria nem na saída nem na chegada, mas durante o percurso da vida. A clínica é um pouco como Rosa «mostra» em sua obra, a vida em si, onde a saída, o início da historicidade nas primeiras consultas, e a chegada, o assunto último trazido ao clínico, são pontos de referência ao que atravessa, permeia, vive na «travessia» de uma existência. O papel existencial de Guimarães Rosa, sobretudo como escritor, torna-se o papel do «desvelamento» da alma humana na travessia singular da vida de cada um de nós, ainda que universalizada nos personagens.
Nasci, para ser preciso, em Cordisburgo, uma cidadezinha sem grande interesse, mas para mim profundamente importante. Além do que, sou de Minas Gerais, sou mineiro. Isso é importante porque quando escrevo eu sempre me transporto de volta a esse mundo passado. Cordisburgo: não acha que esta palavra soa a coisas distantes? Parte da minha família é de origem portuguesa mas é um sobrenome que na realidade é sueco, que na época da invasão dos bárbaros (na Espanha e na Lusitânia) ainda se chamava Guimarães e era capital de uma nação sueca. Por isso, já pela origem, tenho afinidade com tudo que é amplo, desconhecido. Os suecos eram um povo nômade, como os celtas. Este destino, que marcou profundamente a psique de Portugal e de seu povo, é a causa talvez dos meus antepassados se agarrarem tão desesperadamente àquele pedaço de terra chamado sertão. Eu também me agarro a ele de unhas e dentes... Por esse motivo aceito plenamente que me considerem um escritor regionalista — quase toda a literatura brasileira é regionalista, seja de um regionalismo orientado mais para a Bahia ou para o sertão. Daí se conclui que é impossível separar a minha biografia da minha obra.
§ 5 _ Categoria Lugar e Relação seriam importantes para o autor e teriam até mesmo contribuído para que sua representação universalizada do significado homem do sertão fosse construída a partir de suas vivências «lugar, tempo, espaço, relação = circunstância do vivido», portanto, partindo do singular vivido. Haveria igualmente uma forte espacialidade de recíproca de inversão em relação ao próprio passado tornado então narrativa ficional onde os deslocamentos longos sob o olhar do já vivido tornar-se-iam deslocamentos curtos no ato da criação e descrição-literária.
Sou regionalista porque o pequeno mundo do sertão, esse mundo múltiplo e primevo, constitui um símbolo para mim, talvez até o modelo do meu próprio universo. Portanto, a germânica Cordisburgo, fundada por alemães, é o coração do meu império sueco-latino. Creio que essa genealogia deve ser de seu agrado, não?
§ 6 _ Tópico Significado_ o sertão é um símbolo do próprio universo representado assim por Rosa onde sua expressividade «tópico 21» maior aparece pela linguagem escrita.
[2] A linguagem, dado de semiose também predominante, seria junto à escrita literária, a dupla paixão dominante de Rosa e difícil seria o desejo em saber onde começa uma e inicia a outra pois ambas parecem constituir-se como uma só coisa. Os significados atribuídos pelo autor aos inúmeros neologismos de GS:V só podem ser compreendidos dentro do contexto da narrativa e do fato de que Rosa conhecia fluentemente 13 línguas além do português, desse modo, os neologismos lingüísticos seriam como o resultado de uma das paixões dominantes: a linguagem e a linguagem significada por ele em outros signos, significantes e significados.
Minha biografia pessoal não revela muita coisa: tive uma vida normal. Sim, é verdade: fui médico, rebelde, soldado. Foram até etapas importantes da minha vida e, pensando bem, essa sucessão representa por si só um paradoxo. Como médico, apreendi o valor místico da dor, como rebelde, o valor da consciência, como soldado, o da proximidade constante da morte. São categorias de valor que constituem, como o senhor diz, a estrutura dorsal de "Grande Sertão: Vereda", como traz revelações contidas nesse romance. Mas há outras de que falaremos ainda. Por agora, fique claro que essas três experiências formaram meu mundo interior e, para que não se pense que é tudo assim tão simples, devo acrescentar que também a diplomacia, o trato com cavalos, vacas, religiões e idiomas contribuíram para plasmar meu mundo. Pode parecer uma combinação estranha, mas o que não é estranho na vida?
§ 7_ As experiências de vida de Guimarães Rosa em sua riqueza de diferenciação e representadas ou significadas por ele como categorias de valores, para usar seus próprios termos, estiveram muito provavelmente associados ao dado epistemológico permitindo que conhecesse o mundo ora pelo valor místico da dor, ora como valoração da consciência, ora com a valoração da vida pela proximidade da morte. O dado axiológico conteria uma importância ímpar do vivido a partir do epistemológico.
Este parágrafo termina, após um raciocínio aleatório «verdades subjetivas oriundas da parte empírica de sua vida» com um devaneio em forma de pergunta e, portanto, com a implicação de uma resposta via raciocínio cíclico. Utiliza o devaneio, o abstrato para conduzir o leitor às reflexões? Ou para desconstruir seus pré-juízos? É possível assim postular: verdades subjetivas que constituem um raciocínio aleatório em direção a um raciocínio cíclico, tópico dominante para uma narrativa literária, estariam próximas de um dos a prioris kantianos de que todo conhecimento inicia pela experiência mas que não necessariamente deriva dela, considerando aqui os pré-juízos com gênese no vivido; em uma analogia, o conhecimento pode partir de verdades subjetivas, escolhidas e valoradas ao longo da vida ou não, mas não necessariamente terá sua continuidade a partir de um raciocínio aleatório, pois existe uma condição de possibilidade para que se estabeleça enquanto cíclico se as derivações tiverem sua continuidade a partir de devaneios singulares, seja por meio de abstrações não-imagéticas seja por meio de abstrações que comportam imagens com enorme predominância. Quanto às imagens do pensamento, sejam recordadas ou criadas, é possível, no caso de Guimarães Rosa, que façam parte muito mais do raciocínio cíclico que do aleatório, pois pressupomos haver muito mais construção naquele que neste último. Desse modo, a criação a partir de verdades subjetivas não-escolhidas seria um entrave quanto ao processo criativo a não ser que passassem por uma desconstrução e toda desconstrução de pré-juízos teria que se valer de uma construção dada em outro caminho. Assim, o caminho do raciocínio cíclico talvez possa ser o de uma desconstrução da subjetividade que ao mesmo tempo em que desconstrói acaba por construir um outro universo de valoração e sentido para a vida. Escrever não seria então uma desconstrução do real da vida em suas formas de conformidades do cotidiano para outras formas de não-conformação que signifiquem a vida antes mesmo de re-significá-las? Outro possível caminho: talvez o significar «quase-imediato» em outra instância não carregue em si o ato de re-significação e o fato mesmo de ser já em si um significado que não precisou ser re-significado dentro de uma mesma categoria de valoração, o que implicaria mesmo espaço e relação, vem a ser um modo de existir que estaria longe de ser uma mera desconstrução dentro dos mesmos limites de uma determinada questão existencial_ por exemplo, a envolver pré-juízos.
Além do que, não podemos encarar a vida como um colecionador de insetos que classifica besouros.
§ 8_ Aqui existe a presença de um forte pré-juízo, porém em forma de negação, uma espécie de imperativo categórico negativo de como não se deve encarar a vida. Todavia, o tempo verbal não inclui apenas a ele, Rosa, mas a todos nós, o que pode ser observado pelo não devemos_ aliás há um padrão em seu relato da usual forma de negação «não» e que se pensada em termos de armadilha conceitual seria complicado de estabelecer uma relação tendo em vista que o pensamento de Rosa é também dialético em seu movimento estrutural de explicitar seus pensamentos «ver a recorrência no movimento e estrutura de seu raciocínio»
[3].
§ 9_ Outra recorrência estaria no uso constante do verbo «ser» no tempo presente e que na filosofia é considerado como cópula do verbo ser que faz a ligação entre S é P, assim, se considerarmos o fato de que Rosa conhecia Filosofia, e se considerarmos o fato de que predicar algo ao ser é dizer o que o ser é e que isto pressupõe a busca por definições ou conceitos, pressuporíamos na EP Roseana uma busca constante por conceitos, ainda que ele na fala acima, vá nitidamente contra a lógica aristotélica e sua «classificação» que é claro, não se destina somente a besouros, mas a toda e qualquer forma de vida existente no mundo.
[4] -[5]
§ 10_ Hipótese da Armadilha Conceitual a partir do Padrão em Busca de conceitos: Rosa provavelmente resolveu a armadilha da busca conceitual através da maiêutica socrática e da dialética, ao menos em sua obra de maior relevância, Grande Sertão: Veredas, onde uma definição é logo abandonada em troca de outra pergunta e outras derivações e reflexões. A dialética da resposta que leva a outra pergunta e assim sucessivamente talvez tenha sido a maneira como o escritor conseguiu resolver, ainda que intuitivamente, a armadilha conceitual pelo que seria outra paixão dominante: busca por definições que envolviam a natureza e a alma humana.
Uma vaca e um cavalo são seres maravilhosos. Meu apartamento (no Rio) é um museu de quadros de bois e cavalos. Quem já lidou com vacas e com cavalos aprende muito de útil para sua própria vida e para a vida alheia. Isso pode espantá-lo, mas o que eu sou é meio vaqueiro; quando alguém me conta fatos trágicos, respondo: "Se você olhar para os olhos de um cavalo, quanta tristeza do mundo você verá neles!" Como eu gostaria que o mundo fosse povoado só por vaqueiros — seria ótimo para o mundo.
§ 11_ Tópico 3 sensorial com o qual ele significa seres maravilhosos ligado ao tópico 4 emoções, "se você olhar para os olhos de um cavalo, quanta tristeza do mundo você verá neles!" unidos à hipótese em forma de informação dirigida ao interlocutor, ou seja, a partir de um dado sensorial sentido por Rosa e agendado no interlocutor com o objetivo de uma recíproca de inversão futura, agendamento realizado abstrata e antecipadamente pela construção da imagem do olhar de um cavalo em direção a um possível sensorial futuro que resgate no outro a construção já existente pela hipótese de se ver quanta tristeza do mundo haverá neles. Há um apelo à sensibilidade que parte, além do mencionado, de uma_verdade subjetiva-sensorial-emocional que o escritor deseja compartilhar.
Quando logo a seguir ele diz: como eu gostaria que o mundo fosse povoado só por vaqueiros_ seria ótimo para o mundo_ e considerando a fala anterior, pressupõe-se o cuidado de um ser para com outro ser e muito embora não sendo humano, contém a tristeza do mundo. Um desejo em forma de uma busca impossível, contudo pensada e desejada, faz aparecer ainda uma verdade subjetiva anterior ao dado sensorial: a dimensão da tristeza do mundo.
A bem dizer, comecei desde moço a escrever mas só relativamente tarde é que comecei a publicar alguma coisa. Sabe de uma coisa? Nós, gente do sertão, somos contadores de histórias desde que nascemos. Contar histórias faz parte do nosso sangue, é um dom de berço que recebemos para o resto da vida. Desde a infância convivemos sempre com as histórias coloridas contadas pelos velhos, como os contos da carochinha e lendas, e finalmente crescemos em um mundo que freqüentemente nos parece um mundo mau, cruel.
§ 12_ A representação do mundo da infância em contraponto com a representação do mundo em que «crescemos, mau, cruel» seguida da explicação de que por isso nos acostumamos desde cedo à imaginação e ela depois se integra em nossa carne e em nosso sangue, fazendo parte até da nossa alma, pois o sertão simboliza também a alma dos que o habitam. Não é de admirar que desde cedo a imaginação surja entre nós. A valoração da imaginação como parte da alma humana, como substância moldada na alma torna-se um valor escolhido?
Meu Deus, que mais se pode fazer nas horas livres no sertão — quando se tem horas livres — senão contar histórias? Fiquei de orelhas abertas, ouvi muito e comecei a moldar meu ambiente em forma de estórias fantásticas, pois é isso que meu meio ambiente é intimamente: a substância de um conto de fadas.
§ 13_ A valoração da imaginação a partir da vivência «categoria lugar e relação» do meio ambiente inicialmente empírico, depois, como a substância de um conto de fadas, substância moldada a partir de histórias ouvidas na infância, a imaginação como parte da alma, o sertão simboliza a alma dos que o habitam, recíproca de inversão com a categoria lugar, porém valorada de outra maneira.
Foi o que fiz, a princípio de forma instintiva e mais tarde de forma consciente e ponderada. Disse para mim mesmo que não se pode criar "literatura" com o material do sertão. Só se pode escrever a seu respeito em forma de lendas, contos em que imperem a fantasia, as confissões pessoais. Não é indispensável abordar a literatura de um ponto de vista intelectual "a priori". Isso vem naturalmente, mais tarde, quando o ser humano amadurece, quando tudo se funde nele numa personalidade individual, espontaneamente. Mas quem foi criado num mundo que é literatura pura, bela, genuína e real, se tiver uma centelha de talento para escrever tem forçosamente que começar a escrever um dia. É uma lei da natureza.
§ 14 _ Mais uma vez o padrão de negação e pré-juízos, quase um princípio de verdade de que o a priori vem depois, naturalmente. Pode-se inferir isto em Grande Sertão: Veredas em diversas passagens, uma delas: sabença aprendida não serviu de nada. Sabença aprendida como conhecimento oriundo de a prioris antes de qualquer vivência empírica, solitárias, aprisionadas em uma epistemologia puramente a priori não serviriam de nada para a vida. A epistemologia passaria assim para o autor antes pelos dados sensoriais_ como mencionado na analogia kantiana.
Minha biografia, minha biografia literária, principalmente, não deve estar presa a datas como o cristo preso à cruz. Ao escrever descubro sempre um trecho novo da eternidade. Vivo na eternidade, para mim o momento não conta. Ao escrever eu repito experiências passadas (de outras encarnações). E para estas duas vidas não me basta um só vocabulário.
§ 15_ Aqui aparece um dado de TSE além do padrão de negação e o “lugar” em que Rosa vive, na eternidade, categoria lugar singular pois literária e que já não comporta o instante, portanto, a realidade imediata e dada naturalmente pelo fluir da vida não é o lugar preferido de nosso escritor quando o seu papel existencial de escritor era o dominante. O significado de eternidade pode ser inferido de sua relação com o mundo literário, abstrato, representativo, derivado, criado, enfim, todas as esferas possíveis do lugar mesmo da literatura.
Ou melhor: eu quisera ser um jacaré do rio São Francisco. Um jacaré vem ao mundo como mestre de metafísica, pois para ele cada rio é o oceano, um mar de sabedoria, mesmo que ele tenha cem anos de idade. Eu bem que gostaria de ser um jacaré, porque adoro os grandes rios, que são profundos como a alma humana: na superfície são claros e cheios de vida; no fundo são tranqüilos e escuros como sofrimento humano. E há outra coisa ainda que eu adoro nos grandes rios: são eternos. Realmente, rio é uma palavra mágica para dizer eternidade. Só para quem julga que o momento passageiro não é nada, para quem está na eternidade como em seu elemento natural como é o jacaré que já viveu até agora duas vidas, só alguém assim pode achar a felicidade e, o que é mais importante, conservá-la.
§ 16 _O sensorial representado pela metáfora do rio abordando a alma humana em «pontos» distintos: a superfície e o fundo, a predicação de como «é» a alma humana a partir de definições como condição para encontrar a felicidade e conservá-la. Um parágrafo com fortes verdades subjetivas construídas por vice-conceitos e predicações ao ser da alma humana, de como a alma humana «parece» a Rosa singularmente em sua representatividade em pré-juízos à felicidade humana.
Qual é o meu credo? Por que eu escrevo? Sabe? Eu penso assim: cada ser humano tem seu lugar no mundo e no tempo, de acordo com a sua capacidade. A missão que lhe cabe desempenhar não é nunca maior do que a sua capacidade de desempenhá-la. Ela consiste em preencher esse lugar, servindo a seus semelhantes e à verdade. Mas quero sublinhar que o Credo e a criação artística são inseparáveis. Não pode haver diferença entre o homem e o escritor. A vida deve corresponder à criação e a criação deve justificar a vida. Um escritor que não respeitar essa regra não presta como ser humano nem como escritor. O escritor está frente a frente com a eternidade, responsável perante seu próximo e perante si próprio. Para ele não há uma instância superior. É o que eu queria assinalar como o meu tipo de engajamento, o engajamento do coração, que considero o maior possível, o mais importante, o mais humano e sobretudo o único engajamento sincero. A tarefa do crítico é diferente da do autor, pelo menos nesse aspecto de que o crítico está sempre "pisando em território alheio, entrando em mundos alheios". O escritor é um descobridor, naturalmente só o bom escritor. O mau crítico é seu inimigo, pois é o inimigo dos descobridores, de todos os que revelam mundos desconhecidos. Colombo deve sempre ser ilógico, senão não descobre a América. O escritor tem que ser um Cristóvão Colombo. O crítico maligno e inepto, insuficientemente preparado, ao contrário, faz parte da camarilha que quer impedir a sua partida, pois ela contradiz sua assim chamada lógica. O bom crítico, na minha opinião, é que segura o leme a bordo do navio.
§ 17_ Há também neste parágrafo fortes verdades subjetivas e princípios de verdade novamente com a recorrência da negação em sua forma imperativa. O vice-conceito é utilizado em analogias de seres, sensações, imagens, verdades mais que subjetivas, quase um ato de fé para com sua arte de vislumbrar o ser humano em aspectos de visibilidade imediata em sua natureza aparente e sensível em contraponto com a sua profundidade. O engajamento do coração na vida do escritor aponta também para a paixão dominante da literatura como criação e como o mais humano e sincero_ uma forte axiologia parece fazer uma interseção entre os vários tópicos.
O que eu exijo de mim mesmo? Como romancista eu busco o impossível. Quero tornar-me objetivo e contemplar a mim mesmo com olhos alheios. Não sei se é possível; de qualquer modo, detesto a intimidade. Sou da opinião inabalável de que o escritor é um homem de enorme responsabilidade. Mas acho que ele não deve tratar de política, ou pelo menos não desta forma. A sua tarefa é muito mais importante do que a política — sua tarefa é o ser humano. Por isso a política só serve para roubar um tempo precioso. Quando os escritores levam a sério sua missão, a política torna-se supérflua. Aliás, eu sou escritor e, se quiserem, sou também diplomata, mas político nunca fui. Quero frisar claramente que tenho a impressão de que (todos esses escritores) discutem demais e portanto não podem conseguir o que querem, perdem muito tempo discutindo, um tempo que empregariam melhor escrevendo. Ainda admitindo por hipótese que o que eles afirmam está certo, mesmo assim seria sempre melhor que cada um expressasse sua opinião por escrito em vez de ostentá-la diante de um círculo fechado. Na maioria dos casos, a palavra fica impressa e além do mais essas discussões áridas são uma tortura para mim, porque são tão estéreis. Suspeito que são mantidas com o único propósito de confirmar para algumas pessoas o alto conceito que tem de si próprias e para deixarem consignado, arquivado, sem remorso, seu conceito elevadíssimo da "responsabilidade". Naturalmente não é este o caso de todos (os escritores presentes ao Congresso), e quando homens como Asturias falam "pro domo sua" (em causa própria) é justificável. Mas o senhor não notou quem são os que mais falam de política? São sempre justamente aqueles cujos nomes raramente estão associados à autoria de um livro e que quando produzem uma obra não há semelhança entre os pensamentos que estão formulados nela e os que são apresentados aqui. O que sinto é a falta de coerência entre a criação e os comentários desse tipo de escritores. De modo geral, prefiro que um escritor se abstenha sobretudo de se imiscuir em miuçalhas políticas. As grandes responsabilidades de um escritor são naturalmente de outra ordem... No entanto, devo esclarecer que fico ao lado de Asturias, não ao lado de Borges (que formulará o "Testamento de um Apolítico"). É verdade que não estou de acordo com tudo que Asturias disse, no ardor da discussão, mas não estou de acordo com absolutamente nada do que Borges disse. As palavras de Borges denotaram uma carência total de consciência e de responsabilidade. E eu apoio sempre os que assumem responsabilidades, não os que as negam.
§ 18_ Outros valores: «sou da opinião inabalável de que o escritor é um homem de enorme responsabilidade — sua tarefa é o ser humano. Um valor que envolve toda a esfera humana, difícil seria observar todos os valores que constituem este valor maior: o ser humano como tarefa de um escritor. Penso que este deveria ser o valor supremo dos filósofos clínicos: sua tarefa é o ser humano.
Em que me diferencio de Asturias ou de Jorge Amado? Gosto de Asturias, porque é tão diferente de mim. Esse homem é um vulcão genial, é uma exceção, que obedece a leis próprias. Não nos compreendemos e nos admiramos mutuamente porque somos tão diferentes. Mas Asturias vive perigosamente: pensa em termos ideológicos. Sem dúvida, Jorge Amado é um ideólogo também, mas acho sua ideologia mais simpática do que a de Asturias. Asturias tem um pouco da renúncia incorruptível do Sumo Sacerdote, está sempre pregando os Dez Mandamentos. O que é admirável, mas não fascina ninguém. As palavras de Asturias são as palavras de um Pai, de um Patriarca, que emite julgamentos como os contidos no Velho Testamento. Já Jorge Amado é um sonhador. Não há duvida de que defende também uma certa ideologia, mas é a ideologia dos contos de fadas, com suas regras de justiça e expiação. Jorge Amado é uma criança, que acredita sempre no bem e na vitória final dos bons sobre os maus. Ele defende a ideologia menos ideológica; mais amável que conheço. Asturias é a voz solene do Juízo Final, proferindo palavras de ferro.
§ 19_
Sim, essas diferenças são o resultado de experiências diferentes. Pois é justamente isso: a política é uma coisa desumana, porque trata o ser humano como se fosse uma vírgula numa soma. Não sou político justamente porque amo meu próximo. Deviam abolir a política.
§ 20_ Uma verdade subjetiva que acaba por singularizar o ser humano através da crítica que Rosa faz à política seguida de uma dedução, Rosa não é político porque ama seu próximo ou porque ama seu próximo não é político? Em termos de uma análise de estrutura lógica ele escolhe não ser aquilo que vai contra um sentimento, estaria causando um conflito em sua estrutura de pensamento caso fosse atuar na política. Há uma coerência entre o pensado e ao valor que colocou nas escolhas de sua vida que são surpreendentes, quando ele diz «eu penso assim: cada ser humano tem seu lugar no mundo e no tempo, de acordo com a sua capacidade. A missão que lhe cabe desempenhar não é nunca maior do que a sua capacidade de desempenhá-la. Ela consiste em preencher esse lugar, servindo a seus semelhantes e à verdade. Mas quero sublinhar que o Credo e a criação artística são inseparáveis. Não pode haver diferença entre o homem e o escritor. A idéia de uma interseção absoluta entre homem e escritor como sendo uma coisa só talvez tenham norteado grande parte de seus pré-juízos e valoração; a dupla paixão dominante: a busca por uma linguagem própria, a busca pelo impossível, teve como resultado Grande Sertão: Veredas, obra que ele escreveu ao longo de sua vida e que juntamente com o amor desmedido ao próximo e às buscas pelos segredos da profundidade da natureza humana, talvez tenham contribuído muito mais para o desenvolvimento do raciocínio cíclico do que propriamente para a desconstrução de verdades subjetivas, pois no caso de Rosa, suas verdades subjetivas com uma valoração imensa da alma humana serviram de fundamento para o literário, o abstrato, o devaneio, sem perder de vista a ética, a moral, o seu engajamento do coração para com o ser humano.

Nosso postulado final e parcial deste exercício clínico é o de que as verdades subjetivas contidas no raciocínio aleatório foram seu ponto de referência para os devaneios contidos no raciocínio cíclico de um mundo que realmente não está nem na chegada nem na saída mas que se dispõe mesmo é durante a travessia. Assim, não importa se houve uma travessia com re-significação do aleatório para o cíclico ou uma travessia com significação ao cíclico sem passar pela desconstrução do aleatório, pois se bela for a travessia de um ser humano, de homem do sertão, de alma humana, que importância tem em se estabelecer uma travessia analítica do movimento de seus valores?, sentimentos, crenças, vida literária? Ainda mais se a pessoa em questão afirmar: «não pode haver diferença entre o homem e o escritor».
[1] Para quem leu com seriedade a obra maior de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas: a narrativa do personagem-narrador, Riobaldo, é para mim claramente um tratado da ética humana, denso, profundo, abordando várias partes da natureza do ser humano, o qual vai desvelando aos poucos um personagem_ talvez o próprio Rosa_ de rara beleza existencial, de raras sensibilidades ao se propor, solitariamente, grandes questões humanas, ao dar-se, solitariamente, as respostas feitas no silêncio e na vida do sertão. Mas, o sertão é do tamanho do mundo, esta frase de Riobaldo contém o significado de Vida: o sertão é o mundo todo, é o momento, o medo, a angústia, a proximidade da morte, o sentido não-compreendido, as relações humanas, o amor, a amizade, a fidelidade, a traição, o abandono, a esperança, a Vida. A análise que Riobaldo faz constantemente durante a narrativa é um exemplo de grande profundidade do « olhar » de um ser humano para outro ser humano. Que Riobaldo nos sirva, a todos, de exemplo da rara beleza de alma que um ser humano pode chegar a se tornar, a viver em sua passagem por « este mesmo e velho chão ».
[2] É sabido que Guimarães Rosa conhecia fluentemente no mínimo 13 línguas estrangeiras.
[3] Grande Sertão: Veredas inicia com a palavra Nonada [não, nada] para acabar com uma derivação do personagem-narrador, Riobaldo, utilizando-se do mesmo termo.
[4] Ponto também recorrente na obra de Rosa, ainda que ele não seja cartesiano, a predicação, que é uma forma de cartesianidade, permeia sua obra e seu relato aqui utilizado para o exercício clínico.
[5] Colombo deve sempre ser ilógico, senão não descobre a América. O escritor tem que ser um Cristóvão Colombo_ esta fala de Rosa, presente no final de seu relato, revela um padrão pela busca do não-lógico, mas a busca por definições e mesmo o «encontro» de tais definições são partes de uma lógica que se mostra claramente pela recorrência quando do uso da predicação S é P, este padrão é recorrente não só no relato como em Grande Sertão: Veredas, constituindo-se, portanto, como uma provável armadilha da qual Rosa tentava a todo instante ser um Colombo, mas a armadilha da própria linguagem não permite que nosso Colombo-das-Veredas vá longe demais, um longe que seria como ele próprio diz, em sua busca por uma linguagem própria: impossível. Ele o sabe e, por isso, resolve o conflito se utilizando da busca de definições e de predicações, contudo, a dialética o salva de se converter em um aristotélico ou mesmo um cartesiano desmedido.

"E a morte perderá seu domínio"

O poema de Dylan Thomas[1], E A Morte Perderá seu Domínio[2] no filme Solaris[3]
(quando escrevi este texto coincidentemente estava às voltas com a poesia de dylan thomas, foi em 24 de outubro de 2004)

O poema de Dylan Thomas aparece em três cenas do roteiro de Solaris e, não por acaso, existe uma relação entre elas que possibilita múltiplos significados perpassados pelo tema da morte e do amor. Como pequenos fragmentos de existência essa combinação tem como símbolo de representação a poesia de Dylan, a qual antecipa a vida real pelos sentimentos e imagens de lembranças. O lugar da poesia como espelho do amor entre um homem e uma mulher, da morte e de suas lembranças que vêm pelas emoções.
Uma fala maravilhosa bem no início do filme: nós partimos para o cosmos, preparados para tudo, solidão, privação, exaustão, morte. Nós nos orgulhamos, mas quando se pensa nisso, nosso entusiasmo é hipócrita, não queremos outros mundos, queremos espelhos. A história de Solaris, pode ser percebida através de diversos pontos de vista, niilista, finitude, um certo determinismo, amor, arte, como também pelo prisma do «espelho» de lembranças de uma representação do «mundo passado» tornado presente pela falsa linearidade de recordações recorrentes. Culpa? Inconformismo? Perda? Domínio? Emoções? Qual a significação do «espelho» que reflete e desperta uma realidade já vivida, mas que por movimentos recorrentes da memória traz a realidade como um mundo espelhado, porém, “desconhecido”, pois não mais o mesmo?
Na recordação recorrente de Kelvin não haveria o pressuposto de falta, ausência, saudade desse último instante empírico ao lado da mulher amada? Quem não faria de tudo para representá-lo_ trazer este momento último de volta_ torná-lo um espelho sentido como realidade? Do contrário, o não-lembrar faria qualquer coisa vivida ‘sumir’ da memória e a vontade de fazê-lo retornar o substituiria por um outro instante a ser lembrado. Quem recorda senão para reaproximar alguém ou algum sentimento para perto de si uma vez mais, ainda que saiba ser passado?
Imaginemos agora, um homem com a possibilidade de rever a mulher amada depois de alguns anos de seu suicídio e ter a oportunidade de corrigir aquilo que julga ser o erro e a conseqüência de sua morte. Solaris mostra, num certo sentido, a possibilidade de uma segunda chance frente ao suicídio de Rheya, conduz a uma esfera quase surreal para o espectador: se pudesse escolher um instante de sua existência para reparar um erro como o viveria pela segunda vez?
A história possui duas personagens «Rheya», a primeira ama e se casa com o psiquiatra Chris Kelvin, para em seguida suicidar-se; a segunda, aparece na nave em que Kelvin se encontra, alguns anos depois de sua morte, como uma “visitante”, vamos chamá-la de Rheya 2ª. As lembranças dessa personagem vêm como em sonhos espelhados, porém já vividos numa realidade empírica_ pela primeira Rheya. Na primeira recordação de Rheya 2ª surge o poema de Dylan Thomas. O diálogo reproduzido a seguir dá-se através das lembranças de Rheya 2ª em relação à Rheya 1ª e Kelvin quando se conhecem:
"Rheya_ Não estrague. Tente poesia.
Kelvin_ E A Morte Perderá seu Domínio.
Rheya_ humm, Thomas, mas não é um poema alegre.
Kelvin_ Você não parecia nada alegre quando a vi entrando.
Rheya_ Não estava.
Kelvin_ E hoje à noite?
Rheya_ É cedo."
Na segunda cena do poema, também recordações de Rheya 2ª, eles passeiam por uma livraria, Kelvin pergunta a ela:
"Kelvin_ Quando quer se casar?Toda vez que toco no assunto você brinca, bom...
Rheya_ Eu sei, eu sei."
Kelvin se encontra escorado numa estante de livros. Rheya de frente pega um livro e o abre, recoloca-o de volta no lugar, provavelmente o livro de poemas do poeta inglês.
"Kelvin_É alguma coisa que estou fazendo?
Rheya_ Não, a questão não é essa.... E fora o poema que mencionou na noite em que nos conhecemos... (ela refaz a pergunta novamente)
Kelvin_ Na noite em que você me seduziu.
Rheya_ Qual o seu poema preferido?
Kelvin_ Fala de Dylan Thomas?
Rheya_ Sim."
Eles brincam com o livro de poemas de Dylan entre as mãos, Kelvin diz: “havia jovens na terra.”
"Rheya_ Eu sabia, não vou me casar com você.
Kelvin_ Você vai se casar sim.
Sim. Eles casam. E Rheya passa do estado de amor ao de profundo isolamento e tristeza.
Kelvin_ Posso agüentar tudo, menos você se escondendo de mim."
Cena do suicídio de Rheya: ela ingere comprimidos e arranca a página do livro em que está escrita a poesia E A Morte Perderá seu Domínio, ele a encontrará morta com a folha amassada entre os dedos, no decorrer da cena a primeira estrofe do poema soa na voz de Kelvin,
“E A Morte Perderá seu domínio
Nus, os mortos irão se confundir
com o homem no vento e a lua do poente
quando seus alvos ossos descarnados se tornarem pó
hverão de brilhar as estrelas em seus pés e cotovelos
Ainda que enlouqueçam, permanecerão lúcidos
Ainda que submersos pelo mar, haverão de ressurgir
Ainda que os amantes se percam, o amor continuará
E a morte perderá seu domínio.
Rheya (2ª) lembra das cenas de sua própria morte na presença de Kelvin. Ao retornar das lembranças ela se volta e pergunta a ele: você me achou?
Ele responde: "Eu voltei para você naquele dia. Eu sinto muito."
Solaris é um local no espaço que tem outro tipo de domínio, materializa os desejos, lembranças, medos e sonhos dos tripulantes da nave. Rheya está morta, mas ressurge, Kelvin é dominado pelas lembranças, principalmente pela de sua morte. Como se Rheya tivesse ‘ressuscitado’ e kelvin pudesse refazer o passado. Ela funciona como um espelho que fornece parte da mente de Kelvin, ele fornece a fórmula para as lembranças dela porque são as suas próprias lembranças, medos, emoções. Rheya é uma cópia da mente dele e o manipula porque ele permite em sua mente o espelho que o reflete através dela. Em uma leitura derivada do filme, poderíamos pensar em fragmentos da memória como uma espécie de espelho para o aprisionamento manipulador de nossas dores, talvez culpa e tantas outras coisas possíveis de serem re-apresentadas infinitas vezes.
"Rheya_ Será que não percebe? Eu vim de sua lembrança, esse é o problema, eu não sou uma pessoa completa. Na sua memória você pode controlar tudo. Se lembrar de alguma coisa errada, eu estou predestinada a ser assim. Eu sou suicida porque é assim que você se lembra de mim (...)
Kelvin_ Não acredito que estamos predestinados a reviver nosso passado. Nós podemos escolher e torná-lo diferente. (...) Esta é a minha chance de corrigir aquele erro. Preciso que você ajude.
Rheya_ Mas eu sou mesmo ela?
Kelvin_ Isso eu não sei."
Se transpormos isso para uma dimensão não transcendente ou de ficção científica, facilmente uma analogia se faz possível: a Rheya que retorna se substituída pela memória de cada um de nós, diz: «eu», o momento recordado, não sou a pessoa que fazia parte de tal momento, também não sou você que está a lembrar agora, você pode controlar o movimento de uma imagem ou pode se deixar levar por aquilo que julga errado, pode predestinar a imagem de uma pessoa amada a ser lembrada dessa ou daquela forma e ao reviver esse passado da forma escolhida, pode tornar essa lembrança próxima àquela do amor sentido. Se Kelvin pudesse perguntar a Rheya: “como gostaria que eu lembrasse de você?” Por certo, ela não responderia «uma imagem que corrigisse seu erro», talvez dissesse «gostaria que lembrasse das coisas belas, que minha imagem em sua memória fosse suave, muito suave, fosse como poesia, vida, gostaria que lembrasse de mim assim».
Corrigir o erro para Kelvin seria impedir que Rheya se suicidasse, seria impedir perdê-la para a morte enquanto a morte perde seu domínio para a existência de Rheya. Voltando ao poema de Dylan Thomas, o que pensar sobre a relação do diálogo inicial deles e posteriormente sobre o suicídio? O que fica implícito na pergunta dela e na resposta dele? Pressupomos que a pergunta dela contém a idéia de Tarkovski de que a poesia é ‘uma consciência do mundo, é uma forma específica de relacionamento com a realidade, assim a poesia torna-se uma filosofia que conduz o homem ao longo de toda a sua vida’. Se o poema de Dylan foi uma forma de Rheya sentir e desejar a sua realidade, ela ao querer saber qual o poema preferido do homem que ama quer, na verdade, muito mais, ela busca perceber a realidade de seu mundo, a representação que ele tem de si, dela, de seus sentimentos, da vida. A imagem de Rheya remeteu aos versos do poema? Ou os versos do poema nos lábios de Kelvin é que conduziram Rheya? Versos, palavras, linguagem, portanto. Mas há algo que vai além disso, “existe um outro tipo de linguagem, uma outra forma de comunicação: a comunicação através de sentimentos e imagens. Trata-se do contato que impede as pessoas de se tornarem incomunicáveis e que põe por terra as barreiras. Vontade, sentimento, emoção_ eis o que elimina os obstáculos entre pessoas que, de outro forma, encontrar-se-iam nos lados opostos de um espelho, nos lados opostos de uma porta”. A imagem de Rheya foi para ele num primeiro momento a imagem do poema E A Morte Perderá seu Domínio, imagem tornada real e antecipada em versos? Por sua vez, ela faz uma representação, através da resposta de Kelvin, da representação dele sobre o amor e sobre o destino dos dois.
Vamos imaginar que na pergunta de Rheya, sobre qual o poema preferido, estivesse implícito: “eu trago vida a você?” E Kelvin ao responder: E a morte perderá seu domínio, acaba por unir, pela poesia, amor e morte, para separar, também pela poesia, o amor.
Neste ponto indagamos: para quem a morte perderá seu domínio? Perde o domínio para quem partir. Esse niilismo da consciência de finitude se estendido à finitude do amor representaria para Rheya o fim da condição de que é parte da finitude, como uma negação, mas ela não decide sartreanamente pela humanidade, sequer pelo homem que ama, decide simplesmente por si mesma. A morte, personalizada em uma imagem, mantém sob seu domínio a existência, tal domínio que a morte um dia não mais terá sobre os amantes. Rheya ao se suicidar retira o poder de domínio da morte sobre si, esse não-domínio é efetivado pela ausência de sua vida. “O momento da morte representa também a morte do tempo individual: a vida de um ser humano torna-se inacessível aos sentimentos daqueles que continuam vivos, morre para aqueles que o cercam.” Talvez a dor frente à finitude, ao fato de que todos estão presos a tal domínio fosse igual para ambos os personagens. A diferença, é que ela antevê o que faria e, por isso, diz que jamais se casaria com Kelvin frente à menção que ele faz ao poema de Dylan.
A morte já sem nenhum domínio ressurge espelhada para ele através de outras formas de domínio, a não-certeza do retorno da mulher que ama como sendo real ou como sendo sonho, imagem tornada realidade. Rheya se suicida novamente ou é simplesmente a mente de Kelvin que faz com que ela o faça pela segunda vez? Está acontecendo de verdade ou está somente na mente dele? Nas lembranças? Desejos? O domínio da incerteza acaba substituindo o domínio da morte sobre a vida. Existe dor pior? Da incerteza de algo? Da não lucidez do que se está a viver ou daquilo que já se viveu e só é acessível enquanto recordação. Sonho? Desejo? A dor é imaginária ou real? A presença é só uma imagem da mente? A relação dos amantes que se perdem, por um lado, mas que, nos versos de Dylan, por outro lado, jamais se perderão, aponta para uma espécie de paradoxo envolvendo racional e emoção. O fato de haver um domínio sobre o descontrole das emoções sem que haja domínio sobre elas nos faz pensar num espelho que reflete lembranças não escolhidas racionalmente, elas vêm pelas emoções e, por isso, Kelvin não consegue escolher como ressurgirão, não as controla, é controlado por elas_ ou pela sua dor. O emocional fornece o espelho, assim como na poesia, e se as palavras são uma forma de realidade o mundo representado e fragmentado em lembranças pode ser aquele pelo qual não se está preparado ainda para re-viver, quando ainda não é o tempo de si próprio. Talvez exista um fragmento de passado em cada um de nós no qual não possamos ainda «tocar» do contrário, impulsionado por outros sentimentos acabaria por conceder um domínio para o qual se é ainda frágil demais.
Se perguntarmos pelos impulsos que obrigam o ser humano a ir nesta ou naquela direção do reflexo recordado de seus espelhos, como se alguns tópicos de sua estrutura de pensamento dominassem sua memória e alimentassem suas armadilhas conceituais, indagaríamos em seguida: até que ponto algumas pessoas não são comandadas pelas suas emoções sem domínio sobre? Até que ponto não são dominadas por recordações não-racionais? Até que ponto não são dominadas pelos seus pré-juízos? Dominadas por pensamentos recorrentes? Isso é real? Está na minha mente apenas? Não estou superdimensionando o passado de uma lembrança onde a cada retorno acrescento outras “lembranças”?_ que não estavam lá no momento original dado_ construindo para mim um «lugar» como Solaris onde tudo que é pensado e sentido se «materializa» tornando o passado a armadilha conceitual que conteria todos os demais domínios.
Talvez o segredo para a leveza das recordações fosse um filtro que isolasse as armadilhas conceituais, mas a memória constituída de lembranças via armadilhas conceituais torna-se a fonte por onde a água do filtro passa silenciosamente indo em direção ao passado para alterá-lo da pior maneira possível. Tarkovski diz que “privado da memória, o homem torna-se prisioneiro de uma existência ilusória; ao ficar à margem do tempo, ele é incapaz de compreender os elos que o ligam ao mundo exterior”, a armadilha talvez aja aí, se a memória fosse incapaz de não acrescentar e superdimensionar emoções em relação a algo recordado ela seria uma memória estática, sem movimento, sem devir, diferentemente disso, a memória recorrente seria como um balanço, que vai e vem num mesmo espaço limitado. O filtro para a dor e o sofrimento passaria pela representação e teria que ser capaz de permitir o movimento próprio de nossa memória sem que a cada vez que um mesmo instante doloroso fosse lembrado, não corrêssemos o risco de torná-lo um erro que se alimenta de mais um erro totalmente fora do «tempo dado».
Entretanto, que garantias possuímos de que quando estamos a lembrar não nos encontramos sob o domínio do emocional concedendo força à memória em uma recorrência não escolhida? Talvez o filtro só sirva para lembranças-racionais, aquelas que podemos escolher lembrar sem medo porque são controladas pelo discurso da razão com a ilusória convicção de que nada lhe é acrescentado, talvez o filtro não faça a menor diferença quando as recordações são via-emoção, quem sabe, estas sejam como o poema de Dylan, só perdem o seu domínio com a morte e aí é a memória que pode ser vista como uma forma específica de sentir e viver a realidade presente, embalada pelo passado em suas diversas recorrências de um «mundo» representado diferentemente, ora racional, ora não.
Meu texto pergunta muito mais que analisa. Fica o poema completo de Dylan Thomas, que devido a uma rara e inexplicável beleza, como a própria vida? toca de forma estranha, profunda e não menos inexplicável as perguntas sem respostas, “Está entendendo o que eu quero dizer? Não há respostas, só há escolhas.”

"E A Morte Perderá seu Domínio
E A Morte Perderá seu domínio
Nus, os mortos irão se confundir
com o homem no vento e a lua do poente
quando seus alvos ossos descarnados se tornarem pó
hverão de brilhar as estrelas em seus pés e cotovelos
Ainda que enlouqueçam, permanecerão lúcidos
Ainda que submersos pelo mar, haverão de ressurgir
Ainda que os amantes se percam, o amor persistirá
E a morte perderá seu domínio.

E a morte perderá seu domínio.
Aqueles que há muito repousam sobre as ondas do mar
não morrerão com a chegada do vento;
ainda que, na roda da tortura, comecem
os tendões a ceder, jamais se partirão;
entre as suas mãos será destruída a fé
e, como unicórnios, virá atravessá-los o sofrimento;
embora sejam divididos eles manterão a sua unidade;
e a morte perderá seu domínio.

E a morte perderá seu domínio.
Não mais irão gritar as gaivotas aos seus ouvidos
Nem se quebrar com fragor as ondas nas areias
onde se abriu uma flor não poderá nenhuma outra
erguer a sua corda em direcção à força das chuvas;
ainda que estejam mortas e loucas, suas cabeças
haverão de enterrar-se como pregos através das margaridas;
Irrompendo no sol até que o sol se ponha
E a morte perderá seu domínio.”

[1] Dylan Thomas nasceu no país de Gales em 1914. Leu toda a poesia de D. H. Lawrence e ficou impressionado por sua descrição do mundo natural. Fascinado pela língua, ele era excelente em Inglês e leitura, mas negligenciou outros assuntos e acabou abandonando a escola quando tinha 16 anos. Thomas foi um dos melhores poetas neo-românticos do nosso tempo. Com grande pungência, ele expressou a idéia romântica que é a essência da força vital, que a experiência física é passageira e que a vida é muito curta. Muito de sua poesia é sentimentalista e depende do efeito musical das palavras. Sua primeira visita aos Estados Unidos foi com 35 anos, por onde viajou tentando popularizar a poesia, o que fez com sucesso, pois era extravagantemente teatral e lia seus livros com um sentimento profundo. Ele se tornou uma figura legendária, tanto por seu trabalho quanto por sua vida tumultuada. Tragicamente, ele morreu devido ao alcoolismo quando tinha 39 anos.
[2]Agradeço ao músico Oberdan Pegoraro pelas conversas virtuais, em especial a da madrugada em que falávamos sobre The Raven, Dylan e musicalidade que nos vêm pelas palavras através da qual tive uma intuição para escrever este texto.
[3] O filme Solaris produzido pelo diretor russo Andrei Tarkovskié uma adaptação da obra do escritor polonês Stanislaw Lem, não tenho certeza se o poema se encontra na narrativa do livro ou se foi um acréscimo ao roteiro cinematográfico na versão americana. No texto utilizo passagens de ambas as versões, além de citações do próprio Tarkovski de sua obra Esculpindo o Tempo.
Versões de Solaris: 1972_ Donatas Banionis (Kris Kelvin) e Natalya Bondarchuk (Harey) no "Solaris" russo, de Tarkovski. 2002 George Clooney (Chris Kelvin) e Natascha McElhone (Rheya) no "Solaris" americano, de Soderbergh.

A relação entre o filósofo clínico e o partilhante

Este texto foi escrito em 28 de abril de 2004, quando iniciei os estudos em Filosofia Clínica para a Professora e Filósofa Clínica Mariza Niederauer. Fosse agora não escreveria como aí está com tendências muito 'lógicas' de representar a Vida. Ainda assim publicarei, pois fez parte de como fui me envolvendo aos poucos com a FC.

A Relação entre o Filósofo Clínico e o Partilhante e uma aproximação
a partir de Martin Buber
_ e o não-empírico implícito nas consultas em contraponto com o empírico da interseção entre Filósofo Clínico e Partilhante_

Este texto tem o objetivo de refletir sobre a Filosofia Clínica partindo do pensamento do filósofo Martin Buber. Num segundo momento propomos algumas questões que se aproximam do assunto para posteriores reflexões na área da Filosofia Clínica e que se referem a dois momentos da clínica: o empírico, num certo sentido, e o não-empírico, num outro ponto de vista.
Para compreendermos de que maneira a Relação entre FC_P se une ao pensamento de Buber, em especial à segunda parte da obra Eu e Tu, recapitulamos aqui alguns pontos principais. O pensamento buberiano possui como principal característica trazer reflexões sobre a realidade concreta da existência através do próprio logos, tentando ir além de puras abstrações e raciocínios lógicos–filosóficos. O autor insere a filosofia na existência tornando-a uma filosofia da vida que parte do logos não para simplesmente permanecer nele, mas para elevá-lo a um conceito de relação que simboliza e significa o essencial entre os seres humanos. Ora, o essencial entre os seres humanos é a ‘experiência existencial de presença no mundo’, ‘a fonte de seu pensamento é sua vida’, assim, sendo a questão existencial, por excelência, o sentido da vida humana, indagamos: como chegar ao seu sentido senão pelo logos? Buber responde que podemos chegar a tal sentido através da Filosofia do Diálogo que só é possível porque o ser humano sendo racional possui uma linguagem (não só verbal ou lingüística) a qual lhe possibilita estar em relação consigo mesmo e com o outro (s).
[1]
Em Buber, percebemos uma ontologia da relação, da palavra como ‘diálogo na atitude existencial do face-a-face’. O filósofo expõe, na segunda parte da obra, a diferença entre o Eu e as coisas e o Eu-Tu, para ele as coisas que estão no mundo e mesmo aquelas produzidas pelos homens se constituem em coisas, portanto, em objetos e como tais são assim vistas pela consciência do Eu (qualquer Eu, qualquer consciência existente). Mas quando essa relação passa para Eu-Tu, a consciência para qual nos dirigimos, com a qual dialogamos não se converte em puro objeto do nosso pensamento e de nosso agir para com ela, antes pelo contrário, essa relação perpassa o diálogo, Eu-Tu dá-se no âmbito de uma relação dialógica não sendo de forma alguma um objeto, o Outro, com o qual mantemos essa relação de diálogo. Relação esta que não pode ser ‘coisificada’ como as coisas do mundo. Buber insiste muito neste ponto, o Outro não é um objeto, nem nós, que somos então o Tu do Outro, somos coisificados por ele, ambos, Eu-Tu, (o outro em relação ao Eu) estão sempre numa relação e nem mesmo esta relação é um objeto, pois ela ‘envolve’ a ambos, ela está aí no movimento de existir do Eu-Tu. É nesse existir da relação recíproca do diálogo e de uma compreensão também recíproca entre o Eu e o Outro que surge a autenticidade das relações humanas, pois quando há o diálogo mas não há comunicação, quando não se estabelece uma relação viva entre as pessoas no seu face-a-face o diálogo torna-se inautêntico. Assim, a participação de ambos é o ‘entre-humano’ ou ‘inter-humano’ e é no desenvolvimento dessa esfera que surge o dialógico, por isso a relação também não é coisificada, não é um objeto de especulação, antes, é o desenvolvimento da própria existência das pessoas que dialogam numa dimensão recíproca de compreensão dada pelo movimento da existência concreta, do estar-aí e ser-no-mundo. Para Buber, este ser-no-mundo é essencialmente dialógico, é um estar-aí (Da-sein) que envolve sempre o Outro no meu Eu através do logos inserido na existência concreta. Poderíamos dizer que é o ser-aí no ser-no-mundo fazendo da filosofia uma filosofia de vida concreta. Na verdade, uma tentativa de grande parte dos filósofos do século XX, um voltar às coisas mesmas (Husserl), o que pode ser visto desde Husserl, em sua última fase com o problema do Mundo da Vida, Heidegger e a fenomenologia de Ser e Tempo, Bergson e o Absoluto, Sartre e o existencialismo, Merleau-Ponty, o próprio Buber, etc.

Após essa breve exposição da Filosofia do Diálogo em Buber, pretendemos derivar alguns pontos para a Filosofia Clínica. O primeiro ponto se refere à questão do Sujeito-Objeto entre Filósofo Clínico e Partilhante, relação esta (sujeito-objeto) já tão discutida pelos pensadores de toda tradição filosófica. O segundo ponto se liga à memória como sendo um objeto da consciência que recorda e do diálogo da ‘alma consigo mesma’ num processo de pensar-recordar o já vivido, isto é, a relação do sujeito com sua existência não mais concreta no momento recordado_ o não-empírico presente.

O problema que perpassa toda a Filosofia, a questão do sujeito-objeto fica também implícita no texto de Buber, o autor procura superá-la, ao menos no que se refere às relações humanas, tendo como base o próprio diálogo entre as pessoas. ‘Levar os homens a descobrirem a realidade vital de suas existências e a abrirem os olhos para a situação concreta que estão vivendo’, ‘quem ouve senão para responder’?_pergunta o filósofo. Se nos perguntamos pela relação do filósofo clínico e partilhante contrapondo-a com a questão sujeito-objeto, conseqüentemente, as seguintes questões aparecem:
1) O FC é sujeito para si mesmo.
2) P é sujeito para si mesmo.
3) Ambos são sujeitos um para o outro.
4) Mas ambos podem vir a ser objetos um para o outro em determinado sentido que não o de coisificação ou de dualismo frente a duas consciências individuais que procuram a esfera dialógica com um determinado objetivo?

Se pensarmos na filosofia do diálogo de Buber a resposta será, logicamente, sim para sujeito e não para objeto em ambos os casos, nem FC nem P podem vir a se constituir em objeto (um para o outro) em momento algum, pois a relação é o processo no qual o diálogo se dá, é a própria vida não objetificada, o que vale igualmente para o diálogo, não é objeto para nenhum dos dois, nunca, pois ele se desenvolve justamente na relação entre filósofo clínico e partilhante.

Entretanto, se derivarmos a questão sujeito-objeto para o sentido de objeto de reflexão da própria consciência que pensa um determinado problema, é possível aceitar o termo ‘objeto’ sem que se recaia em objeto-coisa, mas objeto enquanto algo que remete a outro algo dentro do pensamento. Vejamos um exemplo: P traz um problema existencial ao FC, o problema X é o “algo” que será pensado, dialogado, lembrado, etc., tanto pelo P quanto pelo FC no decorrrer das consultas. Nem P nem FC são propriamente objetos, mas o problema X torna-se algo na consciência de ambos e a consciência (ou pensamento, ser, alma, seja lá o nome que resolvermos atribuir ao ato mental) é também individual. Assim, existe um problema X. O que existe? X. A expressão “o quê?” remete a algo que não é nem P nem FC, mas faz parte da vida de P. Esse X será ‘objeto’ de diálogo de ambos ainda que durante a esfera dialógica X não seja um objeto, mas o problema em questão. É só porque X é pensado-falado-dialogado que se torna um objeto, não como coisa, mas como “algo” que estará essencialmente ligado ao diálogo e à relação de P com FC e vice-versa. Não se trata, portanto, de coisificar o Partilhante, mas de numa relação em que o diálogo é a base do resultado da clínica perceber que X não é mais a pessoa em sua realidade concreta. Explicamos: quando P fala sobre X não o está vivendo no instante em que fala sobre X, está abstraindo X pelas suas próprias palavras e pensamento num diálogo compartilhado. X não é vivido nesse momento, ele é transposto para o logos, há, dessa forma, um ato abstrativo de ambas as partes, pois o FC também não vive o passado do P. Apesar dessa relação implicar em uma filosofia do diálogo e numa filosofia que visa ‘explicitar’ o concreto da vida do P., a existência mesma de P, não é vivida dentro da clínica. É um falar, um lembrar, um refletir, um perguntar, um buscar uma resposta e isto implica em algo, este algo perpassa tanto o pensamento de P como do FC não sendo, no exato instante da clínica, o empírico. Como se ao falar de X o existir ficasse suspenso. Aceitar que no momento em que P dialoga com o FC o pensamento reflexivo não esteja sobreposto à própria vida de ambos, pois estão ali, falando sobre X sem viver X, é como um não-estar-aí temporário para compreender o que estava-aí, o que estará-aí em presença, em existência. Vê-se nessa circunstância um ‘suspender existencial’ da presença do ente de sua própria vida concreta em ser-no-mundo em detrimento de um ‘abstrair-se da realidade’ de ser-aí para desvelar o sentido das questões que o levaram a procurar o filósofo clínico. É um ser-aí sem sê-lo no que se refere ao movimento da própria existência concreta_ como uma pausa existencial. Fosse diferente, o FC teria que compartilhar a vida do partilhante em seu fluir concreto e real, mas é exatamente o contrário, o distanciar-se, o abstrair-se, é que pode conduzir o partilhante a repensar sua vida. Não é possível viver e realizar grandes ilações ao mesmo tempo sobre a própria existência. Nesse sentido, o Tempo decorrido numa consulta torna-se como que um suspender de ser-aí para um ser-aí-reflexivo que busca respostas a perguntas e que só poderá encontrá-las em si mesmo para isso necessita desse abstrair-se, desse desviar-se do curso normal da vida, desse virar-se temporariamente para o outro lado, o lado que em geral é esquecido porque viver é mais importante que refletir sobre. Mas é só nesse refletir, dobrar-se sobre si mesmo, que pode surgir uma resignificação, no caso, de X.

Outro ponto que vem a favor dessa posição é o fato de que a vida narrada sendo passado é objeto de reflexão, de linguagem, de diálogo, um acontecimento narrado não é vivido novamente só pelo fato de que está sendo contado ao FC, fenomenologicamente ele já se deu, já é finitude e jamais poderá ser vivido empiricamente uma segunda vez. A memória não é um sinal de reviver empírico, ela nos possibilita um reviver no pensamento por meio de recordações, mas nunca do fato em si mesmo. Ainda que tentássemos reproduzi-lo_ e se isso fosse inteiramente possível_ jamais seria igual, pois o Tempo já é um diferencial e só isto basta para tornar qualquer coisa vivida como irrecuperável empiricamente. Logo, o que se passa numa consulta não se passa empiricamente, mas dialogicamente em múltiplas dimensões daquilo que é narrado. O diálogo ‘flutua’ em coisas que não estão sendo vividas naquele instante, dá-se numa esfera do não-vivido. É um momento de muitas coisas e, é claro que é um momento empírico, mas nunca o será do empírico em questão. O momento dado é o diálogo e a relação entre o FC e P. Todo o resto se passa num âmbito que envolve relação, diálogo, memória, recordação, linguagem, fatos, tempo, circunstâncias, etc. etc. mas será sempre um falar sobre, um falar de, um repensar, enfim, um aceitar existencial não-mais-empírico. Nesse sentido, esses momentos da clínica, sendo uma ‘suspender de’, é que possibilitará ao P reencontrar-se como sujeito através de uma reflexão compartilhada. E isto, somente se houver um diálogo autêntico e recíproco entre o Eu e o Tu de ambos onde juntos se abstrairão de suas vidas concretas para serem, ainda que por pouco tempo, um ser-para-o-outro dialógico numa relação existencial não-coisificada, mas antes de mais nada, partilhada entre instantes empíricos e instantes não-empíricos.

[1] Sob um ponto de vista filosófico, Ferrater Mora, ressalta que encontramos exemplos sobre a questão do diálogo em Platão (toda sua obra foi escrita em forma de diálogo e em cada um deles a dialética, ciência suprema, possui distintos caminhos e significados ontológicos-epistêmicos, cf., por exemplo, Crátilo, Sofista, República), Santo Agostinho (De Magistro), Cícero, Galileu, Berkeley, Hume e, evidentemente, em Sócrates (por meio de Platão), também em Plotino ainda que em forma ‘dialogal’ de perguntas e respostas para consigo mesmo. “O diálogo filosófico responde a um modo de pensar essencialmente não-dogmático, portanto, dialeticamente. Por isso, há uma estreita relação entre a estrutura dialógica e estrutura dialética do pensar. (Mora, 727). No Crátilo, Platão diz que ‘aquele que sabe perguntar e responder é o prático ou especialista do diálogo, isto é, o dialético (Crat. 390 C). Assim, o termo diálogo utilizado pelos gregos, embora apresente diferenciais de um filósofo para outro, podemos dizer que o ponto em comum é o fato de haver uma linguagem que serve de instrumento para que o pensamento “avance” através de perguntas e respostas, dialeticamente, como Sócrates já fizera e, talvez essa seja a principal razão que conduziu Platão a escrever toda sua obra (com exceção das Cartas) na forma de diálogo. A filosofia contemporânea ocupou-se muito do problema da comunicação no sentido existencial e do chamado problema do Outro em estreita relação com o ‘diálogo’ ou com a dialética.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

O filósofo clínico por testemunha

O filósofo clínico por testemunha
(texto escrito em 01 de fevereiro de 2004, início dos estudos na filosofia clínica)



O Filósofo Clínico por Testemunha

Sandra Fasolo


“Rodeavam-no todos os objetos familiares. [...] as estantes cheias de livros, o espelho, a lareira necessitando conserto, o velho divã, onde seu pai se sentava, um cinzeiro partido e sobre a secretária um grande livro de registro, escrito pelo próprio punho. Ao ver-se ali, começou a duvidar da possibilidade de uma mudança na sua vida, como facilmente planejara durante a viagem. Todas aquelas testemunhas mudas de sua vida pareciam lhe dizer: “Não. Tu não sairás daqui, não mudarás e serás o mesmo que tens sido até agora, com as tuas dúvidas, os teus desgostos, as tuas inúteis tentativas de melhoramentos, as tuas recaídas no desalento e a tua eterna esperança numa felicidade que não foi feita para ti.” Diziam-lhe isto os objetos da sua intimidade, mas uma voz interior gritava-lhe que é preciso não ser escravo do passado e que cada um deve fazer de si o que bem entender”. Observação, pensamentos e reflexões de Levine, na obra de Tolstoi, Ana Karenina.


Esta ‘fala’ do personagem Levine possibilita a seguinte reflexão: a questão do ser-testemunha pode ser abordada por um ponto de vista da existência como forma de não-finitude absoluta, pois, fixada em lembranças, memórias do passado, lugares por onde passamos, vivemos, pessoas que conhecemos, passam, permanecem, objetos a nos cercarem, lugares em que nos reconhecemos, ambientes que nos falam sobre a própria vida, possibilitam um viés sobre um tipo de finitude que não é total, não é radical, são as coisas da vida que nos trazem a vida mesma em sua imagem de testemunha, como se fosse eterno retorno de recordações.

Quando a relação com o outro deixa de possuir valores como cumplicidade, amor, interesse mútuo do viver_ mesmo no seu cotidiano_ o relacionamento entre duas pessoas, por certo, já deu mostras de uma insatisfação, recíproca ou unilateral, nesses casos, não importa muito pois o fato de um não desejar mais ser a ‘ testemunha’ da vida de seu companheiro é um indício da ausência de muitas coisas antes existentes. Quando fica subentendido em diferentes atos uma fala não dita como ‘o que você vive, o que acontece em sua vida, não mais me interessa ou preocupa, seu bem estar não me diz mais respeito’, o testemunhar e a cumplicidade, junto com muitos outros sentimentos, já vinham se dissipando aos poucos para acabar em término de uma relação a dois. O que resta? Se nada é colocado no ‘lugar’, sobra o vazio e a falta de sentido até mesmo no que diz respeito à vida em suas outras dimensões. Outras sensações surgirão para transformarem-se em mais perguntas, todas implicadas no desespero deste novo vazio: ‘quem prestará, agora, atenção especial à minha existência?’ As indagações serão seguidas sempre mais e mais a partir da ausência desses sentimentos e vivências empíricas. Por outro lado, se algo é colocado no ‘lugar’, em outras palavras, se há uma substituição e o coração volta-se por amar outra face, então, possuí-se o fim de uma relação e o início de outra e para isso será necessário o despojar-se de armadilhas conceituais antigas para que não sejam levadas junto com a nova relação que inicia.
Retornemos à situação da não-substituição, da ausência dos sentimentos antes vividos e sentidos como especiais, pois, não era assim que ele me amava? A partilhante K. chega ao consultório, sua sensação é de que não há mais nenhum ‘olhar’ significativo sobre seus momentos mais autênticos antes compartilhados com tanta intensidade, paixão, carinho e lealdade com seu companheiro. O terapeuta será, muito provavelmente, a pessoa que substituirá tal ‘olhar’, e todos os sentimentos e sensações que daí poderão vir a derivar, diante da ausência de um relacionamento já desgastado, inexistente em seu ‘testemunhar’.
Este olhar do terapeuta sobre seu partilhante, talvez seja um dos pontos que antecedem de maneira determinante o tipo de interseção a se estabelecer entre filósofo clínico e partilhante. Será como este vem a absorver ou significar este novo olhar sobre si que a interseção tomará seus rumos em termos de ser positiva, negativa, mista, indefinida, etc. Poderíamos indagar: mas, então, dependeria da apreensão do partilhante o olhar que o terapeuta ‘lança’ em sua direção ou em direção à sua vida, o resultado clínico? Dito assim soa por demais vago e até mesmo com certa superficialidade, porém se formos mais à frente e pensarmos, enquanto o partilhante conta sua vida e o terapeuta se limita a agendamentos mínimos, o que ele possui como dado de semiose em relação ao partilhante? O ‘olhar’ que colocará sobre o outro será apreendido em uma dimensão muito além, muito mais forte que um olhar dado fora da prática clínica, torna-se a atenção especial da existência de K., a sensação de ausência do testemunhar vazio do empírico é colocada em termos de um testemunhar que será narrado, o especial vem a ser o olhar sobre a historicidade de K. e embora seja completamente diferente do viver em seu fluir fenomenológico, aliado inicialmente às poucas manifestações verbais do terapeuta, seu olhar passará a converter-se nos momentos mais importantes de K., embora passageiros.
A compreensão vem a ser o início do não-vazio, o resgaste do algo perdido, do valor significativo colocado sobre a existência de seu partilhante naqueles instantes agora tão especiais. É possível que isso se dê com apenas algumas pessoas, lembremos a individualidade de cada um, é possível que isso se dê num nível inconsciente para aqueles que se enquadram nesse estado de buscar uma testemunha para a existência, e é bem possível ainda que não seja nada disso. Mas, recordo as acusações que muitos fizeram a Freud, embora outros muitos o aplaudissem exatamente por isso, de que o pai da psicanálise fizera com quem as pessoas trocassem os bancos das igrejas pelos divãs, vê-se nessa crítica histórica do comportamento do ser humano uma espécie de busca recorrente e talvez inerente de si mesmo por uma testemunha de sua própria existência. Para alguns, será o padre e o confessionário, para outros o companheiro de quase uma vida inteira, ainda para alguns os divãs da psicanálise ou o filósofo clínico, pelo tempo necessário de ajudar o partilhante a reorganizar suas idéias, suas emoções, suas perdas e ausências, enfim, depende da singularidade e da historicidade de cada um. Essa nova testemunha que escutará as dores, os sofrimentos e afetos, muitas vezes mal compreendidos porque vivenciados sem o desejo de compreensão, seja epistemológica, axiológica, ou de qualquer outra natureza, não pode esquecer o quanto deve ser leal à cumplicidade a ser construída, espontaneamente ou não, não pode esquecer, tornar-se-á uma espécie de ponte entre o vazio do antes e o conforto para quem se julgava completamente a sós. Retornar ao mundo lá fora em busca de novos caminhos, novas possibilidades e realidades traduzidas na pessoa do terapeuta com se pudesse abrir ao outro uma linha que o conduz de volta a uma existência passível de ser vivida com tanta intensidade quanto àquela julgada inexistente. Quando Kierkegaard diz que o homem precisa utilizar a maiêutica, mas que é importante que a seguir o homem da maiêutica se transforme em testemunha, podemos pensar na atividade do filósofo clínico a qual inicia, desenvolve-se e termina numa relação compartilhada de um diálogo além de si mesmo, de um diálogo que procura despertar, socraticamente, no outro, a consciência de sua própria representação de mundo, de si, de suas relações, emoções, lembranças, etc., este despertar não será um simples indício de possibilidade de ver-se abertamente, contudo de uma re-significação que vem em grande parte pelo papel do clínico em fazer-se testemunha da vida de seu partilhante tanto quanto for necessário para ajudá-lo a resgatar em si o sentido de seu existir. É necessário, para levar alguém com um verdadeiro sucesso a um ponto preciso ter, antes de mais nada, o cuidado de o cativar e começar onde ele se encontra, este é o segredo de toda maiêutica. Todo aquele que disso é incapaz, está iludido quando crê poder ser útil ao outro. Para auxiliar verdadeiramente alguém, devo estar melhor informado do que ele, e antes de mais nada, ter a inteligência do que ele compreende, sem o que a minha sabedoria não lhe traz nenhum proveito. (Kierkegaard). A sabedoria do papel clínico de sentir que será por um tempo alguém a testemunhar o antes sob o ponto de vista de um novo olhar, o olhar de quem compartilha toda uma existência, cúmplice e amigo, acima de tudo uma testemunha do existir, atitude que coloca sobre a pessoa do terapeuta a responsabilidade de novos passos e olhares de representação com os quais o partilhante irá redefinir, quem sabe, seus novos rumos, o valor que passará a colocar como sendo um ponto de partida com possibilidades de renovação. Saber-se testemunha, portanto, pode vir a ser o início de uma interseção positiva. Assumir-se como tal, ainda que por um breve tempo, deslocando a sabedoria da maiêutica para o compartilhar verdadeiro através do diálogo e dividir existencial da representação antes sentida como falta de sentido para (a vida?), pode vir a ser a transição de um algo que termina e outro a iniciar, pelo espelho buscado na figura do terapeuta como uma passagem para uma volta à realidade lá fora, esse testemunhar-temporário, ainda uma vez mais e quantas forem necessárias com sua atenção especial ao passado e ao presente de um ser singular em sua historicidade, mas, quem sabe, universal em termos de desejar alguém que seja o testemunho de si próprio.

No caso de Levine, sua vida solitária de camponês em meio a livros e reflexões oriundas da religião, ciência e filosofia, acaba por despertar-lhe sentimentos em relação aos objetos como testemunhas mudas de sua vida, o lugar em que vive e as coisas que o cercam há anos trazem a ele lembranças do vivido, de pessoas queridas, como seu pai, e passam a se constituir em testemunhas que lhe desafiam a uma não-mudança do que tem sido até então, testemunhas do passado, mas a voz interior de Levine o alerta sobre a escravidão do passado e isso nos remete a outra questão: até que ponto o sentido como testemunha não está a nos desafiar no que temos sido até então? Até que ponto, percebemos o que nos cerca em suas várias dimensões? Testemunhas dos mais diversos tipos que ora apontam para uma não-mudança e ora apontam para um devir a abandonar o que pensamos, acreditamos, e até lutamos para acreditar tanto, sentindo o nosso lugar existencial como um equívoco que não é exterior, antes de mais nada, interior. É onde o nosso olhar de testemunha soa mais denso para fortalecer-se na realidade fenomenológica e depois construir as lembranças da finitude não absoluta, como esta compreendida por Levine. A ser continuamente dependente da compreensão do olhar, existencial?
sandra ádria_na

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