quinta-feira, 23 de abril de 2009

A relação entre o filósofo clínico e o partilhante

Este texto foi escrito em 28 de abril de 2004, quando iniciei os estudos em Filosofia Clínica para a Professora e Filósofa Clínica Mariza Niederauer. Fosse agora não escreveria como aí está com tendências muito 'lógicas' de representar a Vida. Ainda assim publicarei, pois fez parte de como fui me envolvendo aos poucos com a FC.

A Relação entre o Filósofo Clínico e o Partilhante e uma aproximação
a partir de Martin Buber
_ e o não-empírico implícito nas consultas em contraponto com o empírico da interseção entre Filósofo Clínico e Partilhante_

Este texto tem o objetivo de refletir sobre a Filosofia Clínica partindo do pensamento do filósofo Martin Buber. Num segundo momento propomos algumas questões que se aproximam do assunto para posteriores reflexões na área da Filosofia Clínica e que se referem a dois momentos da clínica: o empírico, num certo sentido, e o não-empírico, num outro ponto de vista.
Para compreendermos de que maneira a Relação entre FC_P se une ao pensamento de Buber, em especial à segunda parte da obra Eu e Tu, recapitulamos aqui alguns pontos principais. O pensamento buberiano possui como principal característica trazer reflexões sobre a realidade concreta da existência através do próprio logos, tentando ir além de puras abstrações e raciocínios lógicos–filosóficos. O autor insere a filosofia na existência tornando-a uma filosofia da vida que parte do logos não para simplesmente permanecer nele, mas para elevá-lo a um conceito de relação que simboliza e significa o essencial entre os seres humanos. Ora, o essencial entre os seres humanos é a ‘experiência existencial de presença no mundo’, ‘a fonte de seu pensamento é sua vida’, assim, sendo a questão existencial, por excelência, o sentido da vida humana, indagamos: como chegar ao seu sentido senão pelo logos? Buber responde que podemos chegar a tal sentido através da Filosofia do Diálogo que só é possível porque o ser humano sendo racional possui uma linguagem (não só verbal ou lingüística) a qual lhe possibilita estar em relação consigo mesmo e com o outro (s).
[1]
Em Buber, percebemos uma ontologia da relação, da palavra como ‘diálogo na atitude existencial do face-a-face’. O filósofo expõe, na segunda parte da obra, a diferença entre o Eu e as coisas e o Eu-Tu, para ele as coisas que estão no mundo e mesmo aquelas produzidas pelos homens se constituem em coisas, portanto, em objetos e como tais são assim vistas pela consciência do Eu (qualquer Eu, qualquer consciência existente). Mas quando essa relação passa para Eu-Tu, a consciência para qual nos dirigimos, com a qual dialogamos não se converte em puro objeto do nosso pensamento e de nosso agir para com ela, antes pelo contrário, essa relação perpassa o diálogo, Eu-Tu dá-se no âmbito de uma relação dialógica não sendo de forma alguma um objeto, o Outro, com o qual mantemos essa relação de diálogo. Relação esta que não pode ser ‘coisificada’ como as coisas do mundo. Buber insiste muito neste ponto, o Outro não é um objeto, nem nós, que somos então o Tu do Outro, somos coisificados por ele, ambos, Eu-Tu, (o outro em relação ao Eu) estão sempre numa relação e nem mesmo esta relação é um objeto, pois ela ‘envolve’ a ambos, ela está aí no movimento de existir do Eu-Tu. É nesse existir da relação recíproca do diálogo e de uma compreensão também recíproca entre o Eu e o Outro que surge a autenticidade das relações humanas, pois quando há o diálogo mas não há comunicação, quando não se estabelece uma relação viva entre as pessoas no seu face-a-face o diálogo torna-se inautêntico. Assim, a participação de ambos é o ‘entre-humano’ ou ‘inter-humano’ e é no desenvolvimento dessa esfera que surge o dialógico, por isso a relação também não é coisificada, não é um objeto de especulação, antes, é o desenvolvimento da própria existência das pessoas que dialogam numa dimensão recíproca de compreensão dada pelo movimento da existência concreta, do estar-aí e ser-no-mundo. Para Buber, este ser-no-mundo é essencialmente dialógico, é um estar-aí (Da-sein) que envolve sempre o Outro no meu Eu através do logos inserido na existência concreta. Poderíamos dizer que é o ser-aí no ser-no-mundo fazendo da filosofia uma filosofia de vida concreta. Na verdade, uma tentativa de grande parte dos filósofos do século XX, um voltar às coisas mesmas (Husserl), o que pode ser visto desde Husserl, em sua última fase com o problema do Mundo da Vida, Heidegger e a fenomenologia de Ser e Tempo, Bergson e o Absoluto, Sartre e o existencialismo, Merleau-Ponty, o próprio Buber, etc.

Após essa breve exposição da Filosofia do Diálogo em Buber, pretendemos derivar alguns pontos para a Filosofia Clínica. O primeiro ponto se refere à questão do Sujeito-Objeto entre Filósofo Clínico e Partilhante, relação esta (sujeito-objeto) já tão discutida pelos pensadores de toda tradição filosófica. O segundo ponto se liga à memória como sendo um objeto da consciência que recorda e do diálogo da ‘alma consigo mesma’ num processo de pensar-recordar o já vivido, isto é, a relação do sujeito com sua existência não mais concreta no momento recordado_ o não-empírico presente.

O problema que perpassa toda a Filosofia, a questão do sujeito-objeto fica também implícita no texto de Buber, o autor procura superá-la, ao menos no que se refere às relações humanas, tendo como base o próprio diálogo entre as pessoas. ‘Levar os homens a descobrirem a realidade vital de suas existências e a abrirem os olhos para a situação concreta que estão vivendo’, ‘quem ouve senão para responder’?_pergunta o filósofo. Se nos perguntamos pela relação do filósofo clínico e partilhante contrapondo-a com a questão sujeito-objeto, conseqüentemente, as seguintes questões aparecem:
1) O FC é sujeito para si mesmo.
2) P é sujeito para si mesmo.
3) Ambos são sujeitos um para o outro.
4) Mas ambos podem vir a ser objetos um para o outro em determinado sentido que não o de coisificação ou de dualismo frente a duas consciências individuais que procuram a esfera dialógica com um determinado objetivo?

Se pensarmos na filosofia do diálogo de Buber a resposta será, logicamente, sim para sujeito e não para objeto em ambos os casos, nem FC nem P podem vir a se constituir em objeto (um para o outro) em momento algum, pois a relação é o processo no qual o diálogo se dá, é a própria vida não objetificada, o que vale igualmente para o diálogo, não é objeto para nenhum dos dois, nunca, pois ele se desenvolve justamente na relação entre filósofo clínico e partilhante.

Entretanto, se derivarmos a questão sujeito-objeto para o sentido de objeto de reflexão da própria consciência que pensa um determinado problema, é possível aceitar o termo ‘objeto’ sem que se recaia em objeto-coisa, mas objeto enquanto algo que remete a outro algo dentro do pensamento. Vejamos um exemplo: P traz um problema existencial ao FC, o problema X é o “algo” que será pensado, dialogado, lembrado, etc., tanto pelo P quanto pelo FC no decorrrer das consultas. Nem P nem FC são propriamente objetos, mas o problema X torna-se algo na consciência de ambos e a consciência (ou pensamento, ser, alma, seja lá o nome que resolvermos atribuir ao ato mental) é também individual. Assim, existe um problema X. O que existe? X. A expressão “o quê?” remete a algo que não é nem P nem FC, mas faz parte da vida de P. Esse X será ‘objeto’ de diálogo de ambos ainda que durante a esfera dialógica X não seja um objeto, mas o problema em questão. É só porque X é pensado-falado-dialogado que se torna um objeto, não como coisa, mas como “algo” que estará essencialmente ligado ao diálogo e à relação de P com FC e vice-versa. Não se trata, portanto, de coisificar o Partilhante, mas de numa relação em que o diálogo é a base do resultado da clínica perceber que X não é mais a pessoa em sua realidade concreta. Explicamos: quando P fala sobre X não o está vivendo no instante em que fala sobre X, está abstraindo X pelas suas próprias palavras e pensamento num diálogo compartilhado. X não é vivido nesse momento, ele é transposto para o logos, há, dessa forma, um ato abstrativo de ambas as partes, pois o FC também não vive o passado do P. Apesar dessa relação implicar em uma filosofia do diálogo e numa filosofia que visa ‘explicitar’ o concreto da vida do P., a existência mesma de P, não é vivida dentro da clínica. É um falar, um lembrar, um refletir, um perguntar, um buscar uma resposta e isto implica em algo, este algo perpassa tanto o pensamento de P como do FC não sendo, no exato instante da clínica, o empírico. Como se ao falar de X o existir ficasse suspenso. Aceitar que no momento em que P dialoga com o FC o pensamento reflexivo não esteja sobreposto à própria vida de ambos, pois estão ali, falando sobre X sem viver X, é como um não-estar-aí temporário para compreender o que estava-aí, o que estará-aí em presença, em existência. Vê-se nessa circunstância um ‘suspender existencial’ da presença do ente de sua própria vida concreta em ser-no-mundo em detrimento de um ‘abstrair-se da realidade’ de ser-aí para desvelar o sentido das questões que o levaram a procurar o filósofo clínico. É um ser-aí sem sê-lo no que se refere ao movimento da própria existência concreta_ como uma pausa existencial. Fosse diferente, o FC teria que compartilhar a vida do partilhante em seu fluir concreto e real, mas é exatamente o contrário, o distanciar-se, o abstrair-se, é que pode conduzir o partilhante a repensar sua vida. Não é possível viver e realizar grandes ilações ao mesmo tempo sobre a própria existência. Nesse sentido, o Tempo decorrido numa consulta torna-se como que um suspender de ser-aí para um ser-aí-reflexivo que busca respostas a perguntas e que só poderá encontrá-las em si mesmo para isso necessita desse abstrair-se, desse desviar-se do curso normal da vida, desse virar-se temporariamente para o outro lado, o lado que em geral é esquecido porque viver é mais importante que refletir sobre. Mas é só nesse refletir, dobrar-se sobre si mesmo, que pode surgir uma resignificação, no caso, de X.

Outro ponto que vem a favor dessa posição é o fato de que a vida narrada sendo passado é objeto de reflexão, de linguagem, de diálogo, um acontecimento narrado não é vivido novamente só pelo fato de que está sendo contado ao FC, fenomenologicamente ele já se deu, já é finitude e jamais poderá ser vivido empiricamente uma segunda vez. A memória não é um sinal de reviver empírico, ela nos possibilita um reviver no pensamento por meio de recordações, mas nunca do fato em si mesmo. Ainda que tentássemos reproduzi-lo_ e se isso fosse inteiramente possível_ jamais seria igual, pois o Tempo já é um diferencial e só isto basta para tornar qualquer coisa vivida como irrecuperável empiricamente. Logo, o que se passa numa consulta não se passa empiricamente, mas dialogicamente em múltiplas dimensões daquilo que é narrado. O diálogo ‘flutua’ em coisas que não estão sendo vividas naquele instante, dá-se numa esfera do não-vivido. É um momento de muitas coisas e, é claro que é um momento empírico, mas nunca o será do empírico em questão. O momento dado é o diálogo e a relação entre o FC e P. Todo o resto se passa num âmbito que envolve relação, diálogo, memória, recordação, linguagem, fatos, tempo, circunstâncias, etc. etc. mas será sempre um falar sobre, um falar de, um repensar, enfim, um aceitar existencial não-mais-empírico. Nesse sentido, esses momentos da clínica, sendo uma ‘suspender de’, é que possibilitará ao P reencontrar-se como sujeito através de uma reflexão compartilhada. E isto, somente se houver um diálogo autêntico e recíproco entre o Eu e o Tu de ambos onde juntos se abstrairão de suas vidas concretas para serem, ainda que por pouco tempo, um ser-para-o-outro dialógico numa relação existencial não-coisificada, mas antes de mais nada, partilhada entre instantes empíricos e instantes não-empíricos.

[1] Sob um ponto de vista filosófico, Ferrater Mora, ressalta que encontramos exemplos sobre a questão do diálogo em Platão (toda sua obra foi escrita em forma de diálogo e em cada um deles a dialética, ciência suprema, possui distintos caminhos e significados ontológicos-epistêmicos, cf., por exemplo, Crátilo, Sofista, República), Santo Agostinho (De Magistro), Cícero, Galileu, Berkeley, Hume e, evidentemente, em Sócrates (por meio de Platão), também em Plotino ainda que em forma ‘dialogal’ de perguntas e respostas para consigo mesmo. “O diálogo filosófico responde a um modo de pensar essencialmente não-dogmático, portanto, dialeticamente. Por isso, há uma estreita relação entre a estrutura dialógica e estrutura dialética do pensar. (Mora, 727). No Crátilo, Platão diz que ‘aquele que sabe perguntar e responder é o prático ou especialista do diálogo, isto é, o dialético (Crat. 390 C). Assim, o termo diálogo utilizado pelos gregos, embora apresente diferenciais de um filósofo para outro, podemos dizer que o ponto em comum é o fato de haver uma linguagem que serve de instrumento para que o pensamento “avance” através de perguntas e respostas, dialeticamente, como Sócrates já fizera e, talvez essa seja a principal razão que conduziu Platão a escrever toda sua obra (com exceção das Cartas) na forma de diálogo. A filosofia contemporânea ocupou-se muito do problema da comunicação no sentido existencial e do chamado problema do Outro em estreita relação com o ‘diálogo’ ou com a dialética.

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