quarta-feira, 22 de abril de 2009

O filósofo clínico por testemunha

O filósofo clínico por testemunha
(texto escrito em 01 de fevereiro de 2004, início dos estudos na filosofia clínica)



O Filósofo Clínico por Testemunha

Sandra Fasolo


“Rodeavam-no todos os objetos familiares. [...] as estantes cheias de livros, o espelho, a lareira necessitando conserto, o velho divã, onde seu pai se sentava, um cinzeiro partido e sobre a secretária um grande livro de registro, escrito pelo próprio punho. Ao ver-se ali, começou a duvidar da possibilidade de uma mudança na sua vida, como facilmente planejara durante a viagem. Todas aquelas testemunhas mudas de sua vida pareciam lhe dizer: “Não. Tu não sairás daqui, não mudarás e serás o mesmo que tens sido até agora, com as tuas dúvidas, os teus desgostos, as tuas inúteis tentativas de melhoramentos, as tuas recaídas no desalento e a tua eterna esperança numa felicidade que não foi feita para ti.” Diziam-lhe isto os objetos da sua intimidade, mas uma voz interior gritava-lhe que é preciso não ser escravo do passado e que cada um deve fazer de si o que bem entender”. Observação, pensamentos e reflexões de Levine, na obra de Tolstoi, Ana Karenina.


Esta ‘fala’ do personagem Levine possibilita a seguinte reflexão: a questão do ser-testemunha pode ser abordada por um ponto de vista da existência como forma de não-finitude absoluta, pois, fixada em lembranças, memórias do passado, lugares por onde passamos, vivemos, pessoas que conhecemos, passam, permanecem, objetos a nos cercarem, lugares em que nos reconhecemos, ambientes que nos falam sobre a própria vida, possibilitam um viés sobre um tipo de finitude que não é total, não é radical, são as coisas da vida que nos trazem a vida mesma em sua imagem de testemunha, como se fosse eterno retorno de recordações.

Quando a relação com o outro deixa de possuir valores como cumplicidade, amor, interesse mútuo do viver_ mesmo no seu cotidiano_ o relacionamento entre duas pessoas, por certo, já deu mostras de uma insatisfação, recíproca ou unilateral, nesses casos, não importa muito pois o fato de um não desejar mais ser a ‘ testemunha’ da vida de seu companheiro é um indício da ausência de muitas coisas antes existentes. Quando fica subentendido em diferentes atos uma fala não dita como ‘o que você vive, o que acontece em sua vida, não mais me interessa ou preocupa, seu bem estar não me diz mais respeito’, o testemunhar e a cumplicidade, junto com muitos outros sentimentos, já vinham se dissipando aos poucos para acabar em término de uma relação a dois. O que resta? Se nada é colocado no ‘lugar’, sobra o vazio e a falta de sentido até mesmo no que diz respeito à vida em suas outras dimensões. Outras sensações surgirão para transformarem-se em mais perguntas, todas implicadas no desespero deste novo vazio: ‘quem prestará, agora, atenção especial à minha existência?’ As indagações serão seguidas sempre mais e mais a partir da ausência desses sentimentos e vivências empíricas. Por outro lado, se algo é colocado no ‘lugar’, em outras palavras, se há uma substituição e o coração volta-se por amar outra face, então, possuí-se o fim de uma relação e o início de outra e para isso será necessário o despojar-se de armadilhas conceituais antigas para que não sejam levadas junto com a nova relação que inicia.
Retornemos à situação da não-substituição, da ausência dos sentimentos antes vividos e sentidos como especiais, pois, não era assim que ele me amava? A partilhante K. chega ao consultório, sua sensação é de que não há mais nenhum ‘olhar’ significativo sobre seus momentos mais autênticos antes compartilhados com tanta intensidade, paixão, carinho e lealdade com seu companheiro. O terapeuta será, muito provavelmente, a pessoa que substituirá tal ‘olhar’, e todos os sentimentos e sensações que daí poderão vir a derivar, diante da ausência de um relacionamento já desgastado, inexistente em seu ‘testemunhar’.
Este olhar do terapeuta sobre seu partilhante, talvez seja um dos pontos que antecedem de maneira determinante o tipo de interseção a se estabelecer entre filósofo clínico e partilhante. Será como este vem a absorver ou significar este novo olhar sobre si que a interseção tomará seus rumos em termos de ser positiva, negativa, mista, indefinida, etc. Poderíamos indagar: mas, então, dependeria da apreensão do partilhante o olhar que o terapeuta ‘lança’ em sua direção ou em direção à sua vida, o resultado clínico? Dito assim soa por demais vago e até mesmo com certa superficialidade, porém se formos mais à frente e pensarmos, enquanto o partilhante conta sua vida e o terapeuta se limita a agendamentos mínimos, o que ele possui como dado de semiose em relação ao partilhante? O ‘olhar’ que colocará sobre o outro será apreendido em uma dimensão muito além, muito mais forte que um olhar dado fora da prática clínica, torna-se a atenção especial da existência de K., a sensação de ausência do testemunhar vazio do empírico é colocada em termos de um testemunhar que será narrado, o especial vem a ser o olhar sobre a historicidade de K. e embora seja completamente diferente do viver em seu fluir fenomenológico, aliado inicialmente às poucas manifestações verbais do terapeuta, seu olhar passará a converter-se nos momentos mais importantes de K., embora passageiros.
A compreensão vem a ser o início do não-vazio, o resgaste do algo perdido, do valor significativo colocado sobre a existência de seu partilhante naqueles instantes agora tão especiais. É possível que isso se dê com apenas algumas pessoas, lembremos a individualidade de cada um, é possível que isso se dê num nível inconsciente para aqueles que se enquadram nesse estado de buscar uma testemunha para a existência, e é bem possível ainda que não seja nada disso. Mas, recordo as acusações que muitos fizeram a Freud, embora outros muitos o aplaudissem exatamente por isso, de que o pai da psicanálise fizera com quem as pessoas trocassem os bancos das igrejas pelos divãs, vê-se nessa crítica histórica do comportamento do ser humano uma espécie de busca recorrente e talvez inerente de si mesmo por uma testemunha de sua própria existência. Para alguns, será o padre e o confessionário, para outros o companheiro de quase uma vida inteira, ainda para alguns os divãs da psicanálise ou o filósofo clínico, pelo tempo necessário de ajudar o partilhante a reorganizar suas idéias, suas emoções, suas perdas e ausências, enfim, depende da singularidade e da historicidade de cada um. Essa nova testemunha que escutará as dores, os sofrimentos e afetos, muitas vezes mal compreendidos porque vivenciados sem o desejo de compreensão, seja epistemológica, axiológica, ou de qualquer outra natureza, não pode esquecer o quanto deve ser leal à cumplicidade a ser construída, espontaneamente ou não, não pode esquecer, tornar-se-á uma espécie de ponte entre o vazio do antes e o conforto para quem se julgava completamente a sós. Retornar ao mundo lá fora em busca de novos caminhos, novas possibilidades e realidades traduzidas na pessoa do terapeuta com se pudesse abrir ao outro uma linha que o conduz de volta a uma existência passível de ser vivida com tanta intensidade quanto àquela julgada inexistente. Quando Kierkegaard diz que o homem precisa utilizar a maiêutica, mas que é importante que a seguir o homem da maiêutica se transforme em testemunha, podemos pensar na atividade do filósofo clínico a qual inicia, desenvolve-se e termina numa relação compartilhada de um diálogo além de si mesmo, de um diálogo que procura despertar, socraticamente, no outro, a consciência de sua própria representação de mundo, de si, de suas relações, emoções, lembranças, etc., este despertar não será um simples indício de possibilidade de ver-se abertamente, contudo de uma re-significação que vem em grande parte pelo papel do clínico em fazer-se testemunha da vida de seu partilhante tanto quanto for necessário para ajudá-lo a resgatar em si o sentido de seu existir. É necessário, para levar alguém com um verdadeiro sucesso a um ponto preciso ter, antes de mais nada, o cuidado de o cativar e começar onde ele se encontra, este é o segredo de toda maiêutica. Todo aquele que disso é incapaz, está iludido quando crê poder ser útil ao outro. Para auxiliar verdadeiramente alguém, devo estar melhor informado do que ele, e antes de mais nada, ter a inteligência do que ele compreende, sem o que a minha sabedoria não lhe traz nenhum proveito. (Kierkegaard). A sabedoria do papel clínico de sentir que será por um tempo alguém a testemunhar o antes sob o ponto de vista de um novo olhar, o olhar de quem compartilha toda uma existência, cúmplice e amigo, acima de tudo uma testemunha do existir, atitude que coloca sobre a pessoa do terapeuta a responsabilidade de novos passos e olhares de representação com os quais o partilhante irá redefinir, quem sabe, seus novos rumos, o valor que passará a colocar como sendo um ponto de partida com possibilidades de renovação. Saber-se testemunha, portanto, pode vir a ser o início de uma interseção positiva. Assumir-se como tal, ainda que por um breve tempo, deslocando a sabedoria da maiêutica para o compartilhar verdadeiro através do diálogo e dividir existencial da representação antes sentida como falta de sentido para (a vida?), pode vir a ser a transição de um algo que termina e outro a iniciar, pelo espelho buscado na figura do terapeuta como uma passagem para uma volta à realidade lá fora, esse testemunhar-temporário, ainda uma vez mais e quantas forem necessárias com sua atenção especial ao passado e ao presente de um ser singular em sua historicidade, mas, quem sabe, universal em termos de desejar alguém que seja o testemunho de si próprio.

No caso de Levine, sua vida solitária de camponês em meio a livros e reflexões oriundas da religião, ciência e filosofia, acaba por despertar-lhe sentimentos em relação aos objetos como testemunhas mudas de sua vida, o lugar em que vive e as coisas que o cercam há anos trazem a ele lembranças do vivido, de pessoas queridas, como seu pai, e passam a se constituir em testemunhas que lhe desafiam a uma não-mudança do que tem sido até então, testemunhas do passado, mas a voz interior de Levine o alerta sobre a escravidão do passado e isso nos remete a outra questão: até que ponto o sentido como testemunha não está a nos desafiar no que temos sido até então? Até que ponto, percebemos o que nos cerca em suas várias dimensões? Testemunhas dos mais diversos tipos que ora apontam para uma não-mudança e ora apontam para um devir a abandonar o que pensamos, acreditamos, e até lutamos para acreditar tanto, sentindo o nosso lugar existencial como um equívoco que não é exterior, antes de mais nada, interior. É onde o nosso olhar de testemunha soa mais denso para fortalecer-se na realidade fenomenológica e depois construir as lembranças da finitude não absoluta, como esta compreendida por Levine. A ser continuamente dependente da compreensão do olhar, existencial?
sandra ádria_na

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