quinta-feira, 23 de abril de 2009

Exercício sobre a historicidade de Guimarães Rosa

Historicidade de Guimarães Rosa (falta o itálico nas falas do Rosa)
(06 de dezembro de 2005)
Sou "o homem do sertão", um sertanejo, e quem depreender isto do que eu escrevo terá compreendido meus livros.
§ 1_ Tópico 2 «o que acha de si mesmo» singularizado na obra e universalizado em direção à literatura mediante a representação de mundo, de ser humano e de valores_ como se observa no decorrer do «relato» e a partir de sou “o homem do sertão”.
§ 2_ Pontos iniciais observados: o pressuposto de um tópico que implica em uma condição de possibilidade para a compreensão da obra por parte do leitor a partir da própria representação-existencial: sou o homem do sertão. O uso proposital do artigo definido “o” em vez do uso comum do indefinido “um” homem do sertão, permite novamente através do termo singular, neste caso, representado somente pelo artigo “o” referir-se a todo e qualquer homem dentro da concepção roseana e, uma vez mais, universaliza-se em todo homem, qualquer homem, homem singular.
§ 3_ Quanto ao tópico 1, diretamente vinculado ao tópico 2, o mundo não parece a Guimarães Rosa unicamente como sendo algo fenomenológico, «fenômeno, aquilo que aparece, o que é visto» em relação ao movimento interno de si e tendo como foco o exterior, a vida em seu devir natural, mas também como aquilo que é visto a partir do «olhar» de si, de dentro para aí desenvolver-se em várias e múltiplas dimensões. O «mundo» aparece a Rosa com o próprio interior do ser humano, como aquilo que é passível de aparecer a partir do «olhar» da própria representação interna seja em parte ou constituída por várias partes que formam então o homem do sertão e sem o qual não se poderia compreender nem a Guimarães Rosa nem a sua obra, considerando que ele afirma serem inseparáveis. Aqui aparece com obviedade o tópico 3 em ambas topicidades: em termos do sensorial ser o homem do sertão é claramente um viver sensorial dado pela infância de Rosa; em termos do abstrato, o sensorial ao ser transposto para a literatura vem a converte-se em abstrato, pois o ato de criação literária no instante de seu surgimento envolve-se numa ação abstrata do pensamento do escritor, pensar é um ato abstrativo por si só, imaginar é um ato abstrativo, lembrar é um ato abstrativo, descrevê-los é igualmente um ato abstrativo. Assim a transposição de sou o homem do sertão e as categorias de lugar, tempo, relação, formam o mundo circunstancial onde do sensorial-vivido, portanto, já passado, Rosa passa para o presente abstraído em forma de narrativa literária. Sua obra, nesse sentido, poderia ser vista como uma autogenia mais que singular e complexa por envolver o ser humano num nível ético em raciocínios que oscilam, entre cíclicos e aleatórios.
[1] Isso fornece ao leitor, num ponto de vista outro enquanto lê a narrativa de Rosa, um presente abstrato, porém um presente ilusoriamente tornado fenômeno via imagens e movimento do pensamento, logo, de forma não real, o texto lido vem a ser uma ficção-sensorial para o leitor que imerso na narrativa deixa-se conduzir por um abstrato dado no momento presente que falseia o sensorial que não lhe pertence, mas que contudo é produzido também nele pelo movimento da linguagem literária. Um sensorial presente, sentido como sendo o «agora» mas somente porque o movimento do pensamento e da linguagem absorvida é que possibilitam um sensorial em devir com o abstrato a dar continuidade a tal movimento. Em outras palavras, Rosa parte do sensorial para o abstrato e produz sua literatura, enquanto o leitor partindo do abstrato_ da própria leitura da obra_ produz o sensorial em uma dimensão singular sua, até onde vão suas imagens construídas a partir da leitura, até onde vai sua linguagem e capacidade de absorção de um mundo outro que não o seu, mas, contudo, «como se fosse» seu por ser «sentido-vivido» pela leitura. Considera-se, o que lemos não foi por nós vivido, portanto não-passível de trazer recordações legítimas, e ainda que Grande Sertão: Veredas, por exemplo, fosse lido por um homem do sertão as recordações que a obra poderiam lhe despertar não seriam suficientes para compor imagens recordadas de um sensorial que não é exatamente o seu, talvez aproximativo do vivido, mas apenas partes aproximadas por um dizer outro, o dizer do autor e só a este pertencem as imagens originais do ato da escrita. Toda essa explicação para dizer que o tópico sensorial e abstrato surge invertidamente se o ponto de vista for ou do autor ou do leitor. Este raciocínio se aplicado entre partilhante e filósofo clínico pode proporcionar recíprocas de inversão interessantes à clínica, pois o despertar sensorial de um pode ser o despertar abstrato de outro e o despertar abstrato de um pode ser o despertar sensorial de outro, a consciência das infinitas formas de recíproca de inversão entre dois seres humanos imersos na existencialidade específica de um deles não pode ser denegada em função apenas do partilhante, ou seja, apenas de um ponto de vista possível quando o que está em jogo é um diálogo compartilhado.
§ 3_Tópico 26_ Um todo que abrangendo partes forma o papel existencial de Guimarães Rosa_ poderíamos dizer que existe nessa primeira fala de Rosa um discurso completo quanto a sua existência de ser humano e de escritor, há uma conciliação entre o viver, o pensar, o ser-literato, indissociável da humanidade de Guimarães Rosa em uma busca constante junto à paixão dominante e ao dado semiótico literário e lingüístico, somado a isso, a axiologia e o significado assumem para o autor um «todo» no papel existencial de ser humano-escritor e que, poder-se-ia dizer, formam princípios de verdade aos quais ele não se desvinculou no decorrer da vida literária.
§ 4 _ Tópico _ Quanto ao papel existencial de Guimarães Rosa, saindo do papel existencial atuante em termos de realidade, supomos papéis existenciais da mente, do pensamento, de sensações produzidas pela criação literária do autor, enfim, papéis existenciais abstrativos ligados à paixão dominante de literatura e da linguagem num universo de representações abstratas-literárias, ainda que em parte o real vivido tenha sido um dos pontos de partida, como Rosa mesmo disse o real não está nem na saída e nem na chegada ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. A travessia em Grande Sertão: Veredas é a vida em seu fluir contínuo, independente de quem parte ou fica, em uma analogia, a estrutura de pensamento seria como a travessia, o real não estaria nem na saída nem na chegada, mas durante o percurso da vida. A clínica é um pouco como Rosa «mostra» em sua obra, a vida em si, onde a saída, o início da historicidade nas primeiras consultas, e a chegada, o assunto último trazido ao clínico, são pontos de referência ao que atravessa, permeia, vive na «travessia» de uma existência. O papel existencial de Guimarães Rosa, sobretudo como escritor, torna-se o papel do «desvelamento» da alma humana na travessia singular da vida de cada um de nós, ainda que universalizada nos personagens.
Nasci, para ser preciso, em Cordisburgo, uma cidadezinha sem grande interesse, mas para mim profundamente importante. Além do que, sou de Minas Gerais, sou mineiro. Isso é importante porque quando escrevo eu sempre me transporto de volta a esse mundo passado. Cordisburgo: não acha que esta palavra soa a coisas distantes? Parte da minha família é de origem portuguesa mas é um sobrenome que na realidade é sueco, que na época da invasão dos bárbaros (na Espanha e na Lusitânia) ainda se chamava Guimarães e era capital de uma nação sueca. Por isso, já pela origem, tenho afinidade com tudo que é amplo, desconhecido. Os suecos eram um povo nômade, como os celtas. Este destino, que marcou profundamente a psique de Portugal e de seu povo, é a causa talvez dos meus antepassados se agarrarem tão desesperadamente àquele pedaço de terra chamado sertão. Eu também me agarro a ele de unhas e dentes... Por esse motivo aceito plenamente que me considerem um escritor regionalista — quase toda a literatura brasileira é regionalista, seja de um regionalismo orientado mais para a Bahia ou para o sertão. Daí se conclui que é impossível separar a minha biografia da minha obra.
§ 5 _ Categoria Lugar e Relação seriam importantes para o autor e teriam até mesmo contribuído para que sua representação universalizada do significado homem do sertão fosse construída a partir de suas vivências «lugar, tempo, espaço, relação = circunstância do vivido», portanto, partindo do singular vivido. Haveria igualmente uma forte espacialidade de recíproca de inversão em relação ao próprio passado tornado então narrativa ficional onde os deslocamentos longos sob o olhar do já vivido tornar-se-iam deslocamentos curtos no ato da criação e descrição-literária.
Sou regionalista porque o pequeno mundo do sertão, esse mundo múltiplo e primevo, constitui um símbolo para mim, talvez até o modelo do meu próprio universo. Portanto, a germânica Cordisburgo, fundada por alemães, é o coração do meu império sueco-latino. Creio que essa genealogia deve ser de seu agrado, não?
§ 6 _ Tópico Significado_ o sertão é um símbolo do próprio universo representado assim por Rosa onde sua expressividade «tópico 21» maior aparece pela linguagem escrita.
[2] A linguagem, dado de semiose também predominante, seria junto à escrita literária, a dupla paixão dominante de Rosa e difícil seria o desejo em saber onde começa uma e inicia a outra pois ambas parecem constituir-se como uma só coisa. Os significados atribuídos pelo autor aos inúmeros neologismos de GS:V só podem ser compreendidos dentro do contexto da narrativa e do fato de que Rosa conhecia fluentemente 13 línguas além do português, desse modo, os neologismos lingüísticos seriam como o resultado de uma das paixões dominantes: a linguagem e a linguagem significada por ele em outros signos, significantes e significados.
Minha biografia pessoal não revela muita coisa: tive uma vida normal. Sim, é verdade: fui médico, rebelde, soldado. Foram até etapas importantes da minha vida e, pensando bem, essa sucessão representa por si só um paradoxo. Como médico, apreendi o valor místico da dor, como rebelde, o valor da consciência, como soldado, o da proximidade constante da morte. São categorias de valor que constituem, como o senhor diz, a estrutura dorsal de "Grande Sertão: Vereda", como traz revelações contidas nesse romance. Mas há outras de que falaremos ainda. Por agora, fique claro que essas três experiências formaram meu mundo interior e, para que não se pense que é tudo assim tão simples, devo acrescentar que também a diplomacia, o trato com cavalos, vacas, religiões e idiomas contribuíram para plasmar meu mundo. Pode parecer uma combinação estranha, mas o que não é estranho na vida?
§ 7_ As experiências de vida de Guimarães Rosa em sua riqueza de diferenciação e representadas ou significadas por ele como categorias de valores, para usar seus próprios termos, estiveram muito provavelmente associados ao dado epistemológico permitindo que conhecesse o mundo ora pelo valor místico da dor, ora como valoração da consciência, ora com a valoração da vida pela proximidade da morte. O dado axiológico conteria uma importância ímpar do vivido a partir do epistemológico.
Este parágrafo termina, após um raciocínio aleatório «verdades subjetivas oriundas da parte empírica de sua vida» com um devaneio em forma de pergunta e, portanto, com a implicação de uma resposta via raciocínio cíclico. Utiliza o devaneio, o abstrato para conduzir o leitor às reflexões? Ou para desconstruir seus pré-juízos? É possível assim postular: verdades subjetivas que constituem um raciocínio aleatório em direção a um raciocínio cíclico, tópico dominante para uma narrativa literária, estariam próximas de um dos a prioris kantianos de que todo conhecimento inicia pela experiência mas que não necessariamente deriva dela, considerando aqui os pré-juízos com gênese no vivido; em uma analogia, o conhecimento pode partir de verdades subjetivas, escolhidas e valoradas ao longo da vida ou não, mas não necessariamente terá sua continuidade a partir de um raciocínio aleatório, pois existe uma condição de possibilidade para que se estabeleça enquanto cíclico se as derivações tiverem sua continuidade a partir de devaneios singulares, seja por meio de abstrações não-imagéticas seja por meio de abstrações que comportam imagens com enorme predominância. Quanto às imagens do pensamento, sejam recordadas ou criadas, é possível, no caso de Guimarães Rosa, que façam parte muito mais do raciocínio cíclico que do aleatório, pois pressupomos haver muito mais construção naquele que neste último. Desse modo, a criação a partir de verdades subjetivas não-escolhidas seria um entrave quanto ao processo criativo a não ser que passassem por uma desconstrução e toda desconstrução de pré-juízos teria que se valer de uma construção dada em outro caminho. Assim, o caminho do raciocínio cíclico talvez possa ser o de uma desconstrução da subjetividade que ao mesmo tempo em que desconstrói acaba por construir um outro universo de valoração e sentido para a vida. Escrever não seria então uma desconstrução do real da vida em suas formas de conformidades do cotidiano para outras formas de não-conformação que signifiquem a vida antes mesmo de re-significá-las? Outro possível caminho: talvez o significar «quase-imediato» em outra instância não carregue em si o ato de re-significação e o fato mesmo de ser já em si um significado que não precisou ser re-significado dentro de uma mesma categoria de valoração, o que implicaria mesmo espaço e relação, vem a ser um modo de existir que estaria longe de ser uma mera desconstrução dentro dos mesmos limites de uma determinada questão existencial_ por exemplo, a envolver pré-juízos.
Além do que, não podemos encarar a vida como um colecionador de insetos que classifica besouros.
§ 8_ Aqui existe a presença de um forte pré-juízo, porém em forma de negação, uma espécie de imperativo categórico negativo de como não se deve encarar a vida. Todavia, o tempo verbal não inclui apenas a ele, Rosa, mas a todos nós, o que pode ser observado pelo não devemos_ aliás há um padrão em seu relato da usual forma de negação «não» e que se pensada em termos de armadilha conceitual seria complicado de estabelecer uma relação tendo em vista que o pensamento de Rosa é também dialético em seu movimento estrutural de explicitar seus pensamentos «ver a recorrência no movimento e estrutura de seu raciocínio»
[3].
§ 9_ Outra recorrência estaria no uso constante do verbo «ser» no tempo presente e que na filosofia é considerado como cópula do verbo ser que faz a ligação entre S é P, assim, se considerarmos o fato de que Rosa conhecia Filosofia, e se considerarmos o fato de que predicar algo ao ser é dizer o que o ser é e que isto pressupõe a busca por definições ou conceitos, pressuporíamos na EP Roseana uma busca constante por conceitos, ainda que ele na fala acima, vá nitidamente contra a lógica aristotélica e sua «classificação» que é claro, não se destina somente a besouros, mas a toda e qualquer forma de vida existente no mundo.
[4] -[5]
§ 10_ Hipótese da Armadilha Conceitual a partir do Padrão em Busca de conceitos: Rosa provavelmente resolveu a armadilha da busca conceitual através da maiêutica socrática e da dialética, ao menos em sua obra de maior relevância, Grande Sertão: Veredas, onde uma definição é logo abandonada em troca de outra pergunta e outras derivações e reflexões. A dialética da resposta que leva a outra pergunta e assim sucessivamente talvez tenha sido a maneira como o escritor conseguiu resolver, ainda que intuitivamente, a armadilha conceitual pelo que seria outra paixão dominante: busca por definições que envolviam a natureza e a alma humana.
Uma vaca e um cavalo são seres maravilhosos. Meu apartamento (no Rio) é um museu de quadros de bois e cavalos. Quem já lidou com vacas e com cavalos aprende muito de útil para sua própria vida e para a vida alheia. Isso pode espantá-lo, mas o que eu sou é meio vaqueiro; quando alguém me conta fatos trágicos, respondo: "Se você olhar para os olhos de um cavalo, quanta tristeza do mundo você verá neles!" Como eu gostaria que o mundo fosse povoado só por vaqueiros — seria ótimo para o mundo.
§ 11_ Tópico 3 sensorial com o qual ele significa seres maravilhosos ligado ao tópico 4 emoções, "se você olhar para os olhos de um cavalo, quanta tristeza do mundo você verá neles!" unidos à hipótese em forma de informação dirigida ao interlocutor, ou seja, a partir de um dado sensorial sentido por Rosa e agendado no interlocutor com o objetivo de uma recíproca de inversão futura, agendamento realizado abstrata e antecipadamente pela construção da imagem do olhar de um cavalo em direção a um possível sensorial futuro que resgate no outro a construção já existente pela hipótese de se ver quanta tristeza do mundo haverá neles. Há um apelo à sensibilidade que parte, além do mencionado, de uma_verdade subjetiva-sensorial-emocional que o escritor deseja compartilhar.
Quando logo a seguir ele diz: como eu gostaria que o mundo fosse povoado só por vaqueiros_ seria ótimo para o mundo_ e considerando a fala anterior, pressupõe-se o cuidado de um ser para com outro ser e muito embora não sendo humano, contém a tristeza do mundo. Um desejo em forma de uma busca impossível, contudo pensada e desejada, faz aparecer ainda uma verdade subjetiva anterior ao dado sensorial: a dimensão da tristeza do mundo.
A bem dizer, comecei desde moço a escrever mas só relativamente tarde é que comecei a publicar alguma coisa. Sabe de uma coisa? Nós, gente do sertão, somos contadores de histórias desde que nascemos. Contar histórias faz parte do nosso sangue, é um dom de berço que recebemos para o resto da vida. Desde a infância convivemos sempre com as histórias coloridas contadas pelos velhos, como os contos da carochinha e lendas, e finalmente crescemos em um mundo que freqüentemente nos parece um mundo mau, cruel.
§ 12_ A representação do mundo da infância em contraponto com a representação do mundo em que «crescemos, mau, cruel» seguida da explicação de que por isso nos acostumamos desde cedo à imaginação e ela depois se integra em nossa carne e em nosso sangue, fazendo parte até da nossa alma, pois o sertão simboliza também a alma dos que o habitam. Não é de admirar que desde cedo a imaginação surja entre nós. A valoração da imaginação como parte da alma humana, como substância moldada na alma torna-se um valor escolhido?
Meu Deus, que mais se pode fazer nas horas livres no sertão — quando se tem horas livres — senão contar histórias? Fiquei de orelhas abertas, ouvi muito e comecei a moldar meu ambiente em forma de estórias fantásticas, pois é isso que meu meio ambiente é intimamente: a substância de um conto de fadas.
§ 13_ A valoração da imaginação a partir da vivência «categoria lugar e relação» do meio ambiente inicialmente empírico, depois, como a substância de um conto de fadas, substância moldada a partir de histórias ouvidas na infância, a imaginação como parte da alma, o sertão simboliza a alma dos que o habitam, recíproca de inversão com a categoria lugar, porém valorada de outra maneira.
Foi o que fiz, a princípio de forma instintiva e mais tarde de forma consciente e ponderada. Disse para mim mesmo que não se pode criar "literatura" com o material do sertão. Só se pode escrever a seu respeito em forma de lendas, contos em que imperem a fantasia, as confissões pessoais. Não é indispensável abordar a literatura de um ponto de vista intelectual "a priori". Isso vem naturalmente, mais tarde, quando o ser humano amadurece, quando tudo se funde nele numa personalidade individual, espontaneamente. Mas quem foi criado num mundo que é literatura pura, bela, genuína e real, se tiver uma centelha de talento para escrever tem forçosamente que começar a escrever um dia. É uma lei da natureza.
§ 14 _ Mais uma vez o padrão de negação e pré-juízos, quase um princípio de verdade de que o a priori vem depois, naturalmente. Pode-se inferir isto em Grande Sertão: Veredas em diversas passagens, uma delas: sabença aprendida não serviu de nada. Sabença aprendida como conhecimento oriundo de a prioris antes de qualquer vivência empírica, solitárias, aprisionadas em uma epistemologia puramente a priori não serviriam de nada para a vida. A epistemologia passaria assim para o autor antes pelos dados sensoriais_ como mencionado na analogia kantiana.
Minha biografia, minha biografia literária, principalmente, não deve estar presa a datas como o cristo preso à cruz. Ao escrever descubro sempre um trecho novo da eternidade. Vivo na eternidade, para mim o momento não conta. Ao escrever eu repito experiências passadas (de outras encarnações). E para estas duas vidas não me basta um só vocabulário.
§ 15_ Aqui aparece um dado de TSE além do padrão de negação e o “lugar” em que Rosa vive, na eternidade, categoria lugar singular pois literária e que já não comporta o instante, portanto, a realidade imediata e dada naturalmente pelo fluir da vida não é o lugar preferido de nosso escritor quando o seu papel existencial de escritor era o dominante. O significado de eternidade pode ser inferido de sua relação com o mundo literário, abstrato, representativo, derivado, criado, enfim, todas as esferas possíveis do lugar mesmo da literatura.
Ou melhor: eu quisera ser um jacaré do rio São Francisco. Um jacaré vem ao mundo como mestre de metafísica, pois para ele cada rio é o oceano, um mar de sabedoria, mesmo que ele tenha cem anos de idade. Eu bem que gostaria de ser um jacaré, porque adoro os grandes rios, que são profundos como a alma humana: na superfície são claros e cheios de vida; no fundo são tranqüilos e escuros como sofrimento humano. E há outra coisa ainda que eu adoro nos grandes rios: são eternos. Realmente, rio é uma palavra mágica para dizer eternidade. Só para quem julga que o momento passageiro não é nada, para quem está na eternidade como em seu elemento natural como é o jacaré que já viveu até agora duas vidas, só alguém assim pode achar a felicidade e, o que é mais importante, conservá-la.
§ 16 _O sensorial representado pela metáfora do rio abordando a alma humana em «pontos» distintos: a superfície e o fundo, a predicação de como «é» a alma humana a partir de definições como condição para encontrar a felicidade e conservá-la. Um parágrafo com fortes verdades subjetivas construídas por vice-conceitos e predicações ao ser da alma humana, de como a alma humana «parece» a Rosa singularmente em sua representatividade em pré-juízos à felicidade humana.
Qual é o meu credo? Por que eu escrevo? Sabe? Eu penso assim: cada ser humano tem seu lugar no mundo e no tempo, de acordo com a sua capacidade. A missão que lhe cabe desempenhar não é nunca maior do que a sua capacidade de desempenhá-la. Ela consiste em preencher esse lugar, servindo a seus semelhantes e à verdade. Mas quero sublinhar que o Credo e a criação artística são inseparáveis. Não pode haver diferença entre o homem e o escritor. A vida deve corresponder à criação e a criação deve justificar a vida. Um escritor que não respeitar essa regra não presta como ser humano nem como escritor. O escritor está frente a frente com a eternidade, responsável perante seu próximo e perante si próprio. Para ele não há uma instância superior. É o que eu queria assinalar como o meu tipo de engajamento, o engajamento do coração, que considero o maior possível, o mais importante, o mais humano e sobretudo o único engajamento sincero. A tarefa do crítico é diferente da do autor, pelo menos nesse aspecto de que o crítico está sempre "pisando em território alheio, entrando em mundos alheios". O escritor é um descobridor, naturalmente só o bom escritor. O mau crítico é seu inimigo, pois é o inimigo dos descobridores, de todos os que revelam mundos desconhecidos. Colombo deve sempre ser ilógico, senão não descobre a América. O escritor tem que ser um Cristóvão Colombo. O crítico maligno e inepto, insuficientemente preparado, ao contrário, faz parte da camarilha que quer impedir a sua partida, pois ela contradiz sua assim chamada lógica. O bom crítico, na minha opinião, é que segura o leme a bordo do navio.
§ 17_ Há também neste parágrafo fortes verdades subjetivas e princípios de verdade novamente com a recorrência da negação em sua forma imperativa. O vice-conceito é utilizado em analogias de seres, sensações, imagens, verdades mais que subjetivas, quase um ato de fé para com sua arte de vislumbrar o ser humano em aspectos de visibilidade imediata em sua natureza aparente e sensível em contraponto com a sua profundidade. O engajamento do coração na vida do escritor aponta também para a paixão dominante da literatura como criação e como o mais humano e sincero_ uma forte axiologia parece fazer uma interseção entre os vários tópicos.
O que eu exijo de mim mesmo? Como romancista eu busco o impossível. Quero tornar-me objetivo e contemplar a mim mesmo com olhos alheios. Não sei se é possível; de qualquer modo, detesto a intimidade. Sou da opinião inabalável de que o escritor é um homem de enorme responsabilidade. Mas acho que ele não deve tratar de política, ou pelo menos não desta forma. A sua tarefa é muito mais importante do que a política — sua tarefa é o ser humano. Por isso a política só serve para roubar um tempo precioso. Quando os escritores levam a sério sua missão, a política torna-se supérflua. Aliás, eu sou escritor e, se quiserem, sou também diplomata, mas político nunca fui. Quero frisar claramente que tenho a impressão de que (todos esses escritores) discutem demais e portanto não podem conseguir o que querem, perdem muito tempo discutindo, um tempo que empregariam melhor escrevendo. Ainda admitindo por hipótese que o que eles afirmam está certo, mesmo assim seria sempre melhor que cada um expressasse sua opinião por escrito em vez de ostentá-la diante de um círculo fechado. Na maioria dos casos, a palavra fica impressa e além do mais essas discussões áridas são uma tortura para mim, porque são tão estéreis. Suspeito que são mantidas com o único propósito de confirmar para algumas pessoas o alto conceito que tem de si próprias e para deixarem consignado, arquivado, sem remorso, seu conceito elevadíssimo da "responsabilidade". Naturalmente não é este o caso de todos (os escritores presentes ao Congresso), e quando homens como Asturias falam "pro domo sua" (em causa própria) é justificável. Mas o senhor não notou quem são os que mais falam de política? São sempre justamente aqueles cujos nomes raramente estão associados à autoria de um livro e que quando produzem uma obra não há semelhança entre os pensamentos que estão formulados nela e os que são apresentados aqui. O que sinto é a falta de coerência entre a criação e os comentários desse tipo de escritores. De modo geral, prefiro que um escritor se abstenha sobretudo de se imiscuir em miuçalhas políticas. As grandes responsabilidades de um escritor são naturalmente de outra ordem... No entanto, devo esclarecer que fico ao lado de Asturias, não ao lado de Borges (que formulará o "Testamento de um Apolítico"). É verdade que não estou de acordo com tudo que Asturias disse, no ardor da discussão, mas não estou de acordo com absolutamente nada do que Borges disse. As palavras de Borges denotaram uma carência total de consciência e de responsabilidade. E eu apoio sempre os que assumem responsabilidades, não os que as negam.
§ 18_ Outros valores: «sou da opinião inabalável de que o escritor é um homem de enorme responsabilidade — sua tarefa é o ser humano. Um valor que envolve toda a esfera humana, difícil seria observar todos os valores que constituem este valor maior: o ser humano como tarefa de um escritor. Penso que este deveria ser o valor supremo dos filósofos clínicos: sua tarefa é o ser humano.
Em que me diferencio de Asturias ou de Jorge Amado? Gosto de Asturias, porque é tão diferente de mim. Esse homem é um vulcão genial, é uma exceção, que obedece a leis próprias. Não nos compreendemos e nos admiramos mutuamente porque somos tão diferentes. Mas Asturias vive perigosamente: pensa em termos ideológicos. Sem dúvida, Jorge Amado é um ideólogo também, mas acho sua ideologia mais simpática do que a de Asturias. Asturias tem um pouco da renúncia incorruptível do Sumo Sacerdote, está sempre pregando os Dez Mandamentos. O que é admirável, mas não fascina ninguém. As palavras de Asturias são as palavras de um Pai, de um Patriarca, que emite julgamentos como os contidos no Velho Testamento. Já Jorge Amado é um sonhador. Não há duvida de que defende também uma certa ideologia, mas é a ideologia dos contos de fadas, com suas regras de justiça e expiação. Jorge Amado é uma criança, que acredita sempre no bem e na vitória final dos bons sobre os maus. Ele defende a ideologia menos ideológica; mais amável que conheço. Asturias é a voz solene do Juízo Final, proferindo palavras de ferro.
§ 19_
Sim, essas diferenças são o resultado de experiências diferentes. Pois é justamente isso: a política é uma coisa desumana, porque trata o ser humano como se fosse uma vírgula numa soma. Não sou político justamente porque amo meu próximo. Deviam abolir a política.
§ 20_ Uma verdade subjetiva que acaba por singularizar o ser humano através da crítica que Rosa faz à política seguida de uma dedução, Rosa não é político porque ama seu próximo ou porque ama seu próximo não é político? Em termos de uma análise de estrutura lógica ele escolhe não ser aquilo que vai contra um sentimento, estaria causando um conflito em sua estrutura de pensamento caso fosse atuar na política. Há uma coerência entre o pensado e ao valor que colocou nas escolhas de sua vida que são surpreendentes, quando ele diz «eu penso assim: cada ser humano tem seu lugar no mundo e no tempo, de acordo com a sua capacidade. A missão que lhe cabe desempenhar não é nunca maior do que a sua capacidade de desempenhá-la. Ela consiste em preencher esse lugar, servindo a seus semelhantes e à verdade. Mas quero sublinhar que o Credo e a criação artística são inseparáveis. Não pode haver diferença entre o homem e o escritor. A idéia de uma interseção absoluta entre homem e escritor como sendo uma coisa só talvez tenham norteado grande parte de seus pré-juízos e valoração; a dupla paixão dominante: a busca por uma linguagem própria, a busca pelo impossível, teve como resultado Grande Sertão: Veredas, obra que ele escreveu ao longo de sua vida e que juntamente com o amor desmedido ao próximo e às buscas pelos segredos da profundidade da natureza humana, talvez tenham contribuído muito mais para o desenvolvimento do raciocínio cíclico do que propriamente para a desconstrução de verdades subjetivas, pois no caso de Rosa, suas verdades subjetivas com uma valoração imensa da alma humana serviram de fundamento para o literário, o abstrato, o devaneio, sem perder de vista a ética, a moral, o seu engajamento do coração para com o ser humano.

Nosso postulado final e parcial deste exercício clínico é o de que as verdades subjetivas contidas no raciocínio aleatório foram seu ponto de referência para os devaneios contidos no raciocínio cíclico de um mundo que realmente não está nem na chegada nem na saída mas que se dispõe mesmo é durante a travessia. Assim, não importa se houve uma travessia com re-significação do aleatório para o cíclico ou uma travessia com significação ao cíclico sem passar pela desconstrução do aleatório, pois se bela for a travessia de um ser humano, de homem do sertão, de alma humana, que importância tem em se estabelecer uma travessia analítica do movimento de seus valores?, sentimentos, crenças, vida literária? Ainda mais se a pessoa em questão afirmar: «não pode haver diferença entre o homem e o escritor».
[1] Para quem leu com seriedade a obra maior de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas: a narrativa do personagem-narrador, Riobaldo, é para mim claramente um tratado da ética humana, denso, profundo, abordando várias partes da natureza do ser humano, o qual vai desvelando aos poucos um personagem_ talvez o próprio Rosa_ de rara beleza existencial, de raras sensibilidades ao se propor, solitariamente, grandes questões humanas, ao dar-se, solitariamente, as respostas feitas no silêncio e na vida do sertão. Mas, o sertão é do tamanho do mundo, esta frase de Riobaldo contém o significado de Vida: o sertão é o mundo todo, é o momento, o medo, a angústia, a proximidade da morte, o sentido não-compreendido, as relações humanas, o amor, a amizade, a fidelidade, a traição, o abandono, a esperança, a Vida. A análise que Riobaldo faz constantemente durante a narrativa é um exemplo de grande profundidade do « olhar » de um ser humano para outro ser humano. Que Riobaldo nos sirva, a todos, de exemplo da rara beleza de alma que um ser humano pode chegar a se tornar, a viver em sua passagem por « este mesmo e velho chão ».
[2] É sabido que Guimarães Rosa conhecia fluentemente no mínimo 13 línguas estrangeiras.
[3] Grande Sertão: Veredas inicia com a palavra Nonada [não, nada] para acabar com uma derivação do personagem-narrador, Riobaldo, utilizando-se do mesmo termo.
[4] Ponto também recorrente na obra de Rosa, ainda que ele não seja cartesiano, a predicação, que é uma forma de cartesianidade, permeia sua obra e seu relato aqui utilizado para o exercício clínico.
[5] Colombo deve sempre ser ilógico, senão não descobre a América. O escritor tem que ser um Cristóvão Colombo_ esta fala de Rosa, presente no final de seu relato, revela um padrão pela busca do não-lógico, mas a busca por definições e mesmo o «encontro» de tais definições são partes de uma lógica que se mostra claramente pela recorrência quando do uso da predicação S é P, este padrão é recorrente não só no relato como em Grande Sertão: Veredas, constituindo-se, portanto, como uma provável armadilha da qual Rosa tentava a todo instante ser um Colombo, mas a armadilha da própria linguagem não permite que nosso Colombo-das-Veredas vá longe demais, um longe que seria como ele próprio diz, em sua busca por uma linguagem própria: impossível. Ele o sabe e, por isso, resolve o conflito se utilizando da busca de definições e de predicações, contudo, a dialética o salva de se converter em um aristotélico ou mesmo um cartesiano desmedido.

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